segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Desabafo na Urca

Era a estréia de um novo equipamento da emissora.
O motolink é compacto.
Transporta em duas rodas toda a parafernália necessária para uma entrada ao vivo.
Nas eleições de 2006, eu e o repórter cinematográfico Alberto Fernandez, percorremos a cidade com a moto. Na zona eleitoral da Urca, no fim da tarde, uma surpresa: Surge Roberto Carlos a pé com dois seguranças.

O Rei fora votar. Fomos junto. Na saída, uma entrevista rápida, inesperada. Foi meu primeiro encontro com o Rei, em serviço. Mal sabia eu que viria outro, bem mais inesquecível.
No ano passado, fui escalada para acompanhar uma gravação também na Urca. Seria no estúdio do ídolo. Cheguei toda de branco.
O assessor de Roberto nos atendeu. Aguardamos na sala.
Um ambiente amplo, iluminado, com imagens religiosas e tapetes escovados.
De repente aparece o cantor, vestido de camisa jeans.
Extremamente atencioso com os súditos invasores.

_Já ofereceram um cafezinho pra vocês?

E depois, mais pergunta:

_ Qual é mesmo a música que tenho que cantar na reportagem?

_Fica a seu critério. Todas são incríveis_ respondi.

_Escolhe você, então_ disse o Rei.

Pedi a infalível "Detalhes" e outra menos conhecida, mas, não menos encantadora, "Olha".
Câmeras posicionadas, luzes calibradas e lá estava Roberto Carlos, debruçado em seu pedestal, num show privê para nós.
Um privilégio.
Ao ouvir "não adianta nem tentar me esquecer...", me emocionei. Vivia o término de um namoro longo. Enfrentava aquela fase doída do choro fácil. Com tal trilha sonora, não há coração que aguente firme. Rolava a canção e eu disfarçava as lágrimas no canto do estúdio, embaixo dos óculos escuros.

Não adiantou muito... Quando acabou a música, veio ele:

_Por que tanta tristeza, menina? O que houve?

Nessa hora, devia ter me lembrado da famosa desculpa do "cisco no olho" ou da providencial "alergia à lente de contato"... Não deu. Disse a verdade.
Seguiu-se um desabafo inusitado com o Rei. Um carinho curioso.
Ele queria ouvir meus detalhes tão pequenos.
Coisas muito grandes pra esquecer e muito difíceis de admitir.
Minha equipe observava estarrecida a sessão de análise improvável.
Quando tentava encerrar a cena e retomar a gravação, vinha ele com mais perguntas sobre meu ex. Sobre nossa briga. Em poucos minutos, me deu conselhos valiosos e, por fim, me abraçou.
Lágrimas constrangedoras brotaram de novo e molharam a camisa do Rei.
Como seguiríamos com a gravação? E a continuidade das imagens?

_Não tem problema, minha querida, tenho outra igual lá no armário.
Pode chorar a vontade._ disse ele.

Conversa revigorante aquela.
No elevador, aturei as brincadeiras inevitáveis da equipe, ainda chocada com meu desprendimento...
Respondi rindo:

"Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi."

Carta de um amigo

Música para leitura: Killer Queen Para Mariana Gosto dela. Principalmente quando dá aquelas gargalhadas silenciosas. É um momento delicioso e curioso, porque consegue fechar apenas um dos olhos (se não me falha a memória, o esquerdo) e leva a mão (aí, sim, a direita) espalmada perto da boca, como se quisesse esconder o som invisível de seu riso. É de tirar o fôlego. Em forma de éle, ela quase que encaixa o polegar no queixo, enquanto o indicador encosta levemente na ponta do nariz. Como se sua risada fosse um segredo aberto: uma tosse de ternura. Sabe como é, né, Vinicius? A gente se conheceu na redação. Não lembro bem como foram as primeiras palavras, mas ela vinha sempre cheia de ginga e de gíria. Sabia que não era seu jeito, mas uma forma de se aproximar de um garotão de 22 anos, meio zona sul, meio metido a malandro. Ela é observadora. Fala bastante, porém a mesma destreza das palavras proferidas lhe serve das que sabe ouvir. Quando presta atenção às coisas, espreme as sobrancelhas, aperta os olhinhos castanhos e fica levantando e abaixando a cabeça rapidamente, em movimentos curtos, mostrando não só que está entendendo o assunto, além de, claro, demonstrar interesse, mas também expressa, à sua maneira, uma forma de pedir - e consentir - que a história a qual atenta possa prosseguir. Eis que um dia ela me aparece e me faz a seguinte pergunta: “Você já voou de helicóptero?”. Senti um friozinho na barriga, porque tal curiosidade não viria sem propósito. Respondi ansiosamente que não, mas fingi uma calma que, de tão forçada, acabei errando a mão e quase fiz da indiferença um desdém. É óbvio que ela não percebeu – nunca perceberia. Ela devolve: “Quer voar comigo no Globocop?”. Não preciso dizer qual foi a resposta. Portanto, ela continuou: “Faz o seguinte: inventa uma pauta qualquer, vende pra chefia. Chega na redação às seis (da manhã) em ponto”. Mal sabia ela que já estava nas alturas antes mesmo de alçar voo. Cheguei na hora combinada. Vesti uma camisa social branca (nunca vou saber o porquê) e fomos para o heliponto. Para ela, nada demais. Para este aqui: tudo. Fui apresentando ao piloto e ao cinegrafista. Embarcamos. O som das hélices preguiçosas girando, agora, nervosas. Estava amanhecendo dentro e fora daquele instante. Não conseguia fazer mais nada a não ser encarar Mariana, como se esperasse instruções para o próximo passo: caminhar nas nuvens. Decolamos. Passeio pelo Dois Irmãos, Vidigal tranqüilo, incêndio no Flamengo, escada magirus fazendo cosquinha no pé. Um voo de meia-hora, mas que nunca terminou... E aí, percebo Mariana anotando, a duras penas, as máximas e mínimas previstas para algumas cidades do estado. Atenciosa. Mas a pressa do tempo acaba atrapalhando o zelo, e os papéis onde tinha anotado as temperaturas esvoaçaram pela cabine. Mas não percebemos. Quando era chegada a hora de entrar ao vivo, a doce Mariana arregala os olhos, abre a boca, suspende as sobrancelhas e vejo o desespero transbordando invisível pelas suas mãos estabanadas gesticulando para mim alguma coisa para que pudesse lhe ajudar. Meu nervosismo deu lugar a uma serenidade inexplicável e simplesmente procurei debaixo do banco onde estávamos: lá estava o rabisco dela, com os números anotados em centígrados. Que suspirada, hein, moça? Alívio. Ela me agradece até hoje. E eu também. Outra vez, agorinha mesmo, fui parar nas nuvens com ela. De novo. Como se deu? De helicóptero. Outras circunstâncias, outros tempos. Talvez o vento fosse o mesmo que nos levasse pra lá, para o alto, para o céu: para as estrelas. Afinal, ela tem luz própria. Mesmo que, ao nosso redor, juntamente com outras duas jornalistas, houvesse três metralhadoras e cinco policiais. Mesmo que esta aeronave fosse blindada, que nos protegesse de algum perigo que não estivesse ali, porque não há certos ensaios para certas ocasiões. Talvez a blindagem não fosse à prova das coincidências. Era a segunda vez na vida que voava de helicóptero. E era a segunda vez que estive com ela nas alturas. É a única mulher que me deixou nas nuvens, mesmo em dias de céu claro. Mesmo despretensiosamente numa vez, mesmo acidentalmente noutra. Sim, ela tem esse dom. Quando faço uma visita: Ela pergunta se não quero beber alguma coisa, depois lista as bebidas que tem na geladeira. Das que não tem na geladeira. Depois quer saber se estou com fome. Que pode fazer alguma coisa rapidinho, que não dá trabalho nenhum. Eu até tinha fome certas vezes, mas não queria parar a conversa ali. Quando o papo fica bom é fogo. E muda a posição, cruza as pernas, descruza as pernas, toca o telefone. Pede licença e atende. Às vezes, também quando toca o telefone, pede licença e não atende. Prefere continuar com suas histórias, que ficam um pouco minhas também, porque algumas só eu fico sabendo, ela gosta de me contar as coisas. Quando o papo fica bom é fogo. E é bom quando rimos das nossas desilusões amorosas, das nossas ilusões amorosas, das fofocas do trabalho, da saudade de meu pai, sobre casamento, suas histórias engraçadas e “típicas da Mariana”, de suas amigas com sobrenome de cobertura, de quantas vezes perdeu o celular, das novidades de morar sozinha, das novidades de viver uma vida literária, de palavras: de poesia. Gosto dela. De lá pra cá, nossos laços se estreitaram. Mas não foi depressa, não. Não ficamos amigos logo. Seis anos depois, sim, que posso dizer que me orgulho de tê-la em minha vida. Gostava de vê-la chegando, às vezes, mal humorada na redação bem cedinho. Escondida atrás de um rayban, sintonizada sempre com seu ipod (mas apenas um ouvido no fone, o outro ficava livre, acho que para prestar atenção nas coisas, jornalista esperta que é), sempre vinha à subchefia buscar a pauta. E aí contava uma história engraçada, colecionando sorrisos dos colegas, desopilando o clima pesado das manhãs violentas da cidade. Sim, a Mariana é muito engraçada. Ela é charmosa, ela é boa de papo. Talentosa: a Mariana brilha. Mas gosto mais de seu lado sério, quando ouve nossas palavras, quando nos prepara um jantar improvisado, quando serve um espumante rosé, um vodka com suco de laranja natural, um vinho, uma coca zero, uma água: quando nos acolhe pelo estômago. E pelo coração.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

NY-ALEMÃO


Nem mesmo as vitrines pirotécnicas.
Nem mesmo as cores do Parque no outono.
Muito menos o vinho francês no bistrô ou a promoção de sapatos italianos.

As notícias do canal internacional sobre o Rio de Janeiro causavam urticária. Coceira jornalística agravada pela distância.

Nos últimos dias da viagem, as luzes da Quinta Avenida já não chamavam a atenção. Minha cidade começava a derrubar suas mais altas torres da violência. Vivia situação oposta a da Big Apple.
A queda de nosso World Trade Center do tráfico era inevitável, necessária, sonhada. A fortaleza impenetrável dos algozes ia virar escombro.
Como seguir pisando em folhas secas?
Voltei.

A rota NY-Alemão emendou no voo de helicóptero pelo Conjunto de Favelas da Penha, sem escalas. Passeio surreal ainda sob os efeitos da viagem de avião da madrugada.
Traficantes, seguiam valentes, apontavam as armas para cima, para nós.
Décadas de domínio e impunidade devassadas pelas lentes, ao vivo.
A nitidez era tanta que eu nem precisava narrar, só mostrar.
Não eram bandidos, era uma quadrilha em todo o esplendor do coletivo.
No entorno da Favela, tanques posicionados para a invasão.
O olhar estarrecido do cinegrafista do Globocop sublinhou a cobertura histórica.

Sem intervalos, sem caprichos, sem amenidades. A notícia em seu primor, do ar, no ar, crua.

Nas veias, corria o hormônio revigorante da profissão que escolhi, que cura ressaca de voo e o aperto da bexiga.

Sensação estranha. Ontem seguia sem hora, sem rumo nas Ruas sem nome da capital do mundo.
Hoje seguia alerta, desperta, coberta de memórias atrozes. De toda uma época de ameaças e mortes estúpidas naquela região.

Quando avistei as bandeiras do Rio e do Brasil tremulando no alto do Complexo, engoli seco, narrei e chorei baixinho. Em pensar que naquelas montanhas tantos perderam a vida torturados por um grupo de terroristas descamisados. O sorriso largo de Tim Lopes voltou para mim como relâmpago iluminando a chuva.

No dia seguinte, em terra, o contato com moradores do Conjunto carinhosos como nunca.

Uma menina de trancinhas seguia apressada. Me olhou e sorriu. Na volta, largou a mão do pai e abraçou-me as pernas com perguntas comoventes:

 _Vocês não vão mais embora, né? Promete que vão ficar aqui?

De repente, avisto um senhor de cara manjada caminhando sozinho pelas vielas.
Mais um jornalista que queria ver de perto a retomada da estima carioca. Anotar na retina dados para mais uma coluna.
O brilhante Zuenir Ventura foi patrono de minha formatura na Faculdade.
Sigo aprendendo com ele.

Que bom que voltei. Que bom, meu Rio...

sábado, 13 de novembro de 2010

Sem fecho


Atrás da sobrancelha
No fundo da retina
Sob a telha
Parado na esquina

Qualquer esquina.

Na entranha recôndita
No azul da alma
Em música bendita
Nas linhas da palma

Da minha palma.

Nas letras que escrevo
Cores que enxergo
Em alto relevo
Nas dores que envergo

Mas não quebro.

És corrente sem fecho
Poro da pele
Fim sem desfecho?
Que o tempo revele

Revele.

Porque não escondo mais.
Sinto.
E digo.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

É big, é big...

Dia seis de abril de 2010, quatro e meia da manhã.
O telefone toca estridente. Espeta o sono como agulha na ponta do dedão.

 _Vem pra cá. Precisamos de você.

Lá fora, a noite seguia molhada. Encharcada. Horas torrenciais.
A ladeira da minha rua era leito para um rio inédito que descia voraz do alto da Gávea.
Larguei a cozinha surpreendentemente alagada.
Galochas, capa e lá fui eu a pé para o bairro vizinho.
Na esquina escura, um mendigo se equilibrando no muro de uma mansão:

_ A moça endoidou? Vai sair andando pra onde? _perguntou ele.

Consegui chegar até o Hospital Miguel Couto onde uma fila de ônibus fora barrada pela enorme poça.
Por acaso, encontrei uma equipe da Globo. Me juntei ao grupo. Começava aí uma maratona de quinze horas ininterruptas de trabalho no dia em que a chuva paralisou boa parte do Estado.

Pobre Dona Amélia. Saíra de noite da Baixada Fluminense para uma entrevista de emprego na zona sul. Acabou ilhada no banco do coletivo. Ao lado, uma mãe tentava acalmar a criança no meio do dilúvio. Olhares de espanto, de desamparo.

Fomos para o Túnel Rebouças, principal ligação entre as zonas norte e sul da cidade.
O carro navegou até lá. Os acessos estavam com mais de um metro de inundação.
Centenas de motoristas seguiam presos nas galerias sem rota de fuga.
Era preciso esperar o nível da água baixar, mas o temporal não dava trégua.
Paramos ali.
A Lagoa Rodrigo de Freitas, transbordava em lama e esgoto.
Bueiros eram puro enfeite.
Enquanto entrava ao vivo nos telejornais, os pingos batiam forte no rosto.
A água invadia a galocha e enrugava os dedos.
 Em poucos minutos, a roupa ensopada.
Lacraias e baratas surgiam boiando na enchente.
Por vezes se aproximavam de meu jeans submerso.

_Falamos ao vivo da Lagoa, zona sul da cidade. Se você está em casa, fique onde está. Essa é a recomendação da Defesa Civil. _ dizia eu.

De repente, o cinegrafista Carlayle André me manda afastar às pressas. Ventava forte e uma árvore ameaçava desabar em nossa direção.
À tarde, já com a rua mais seca, uma amiga que mora ali perto desceu com meias e camisas.
Me assistiu durante toda a manhã na TV e teve clemência. Tirou a foto que ilustra este texto.
Fiz a troca de roupa no banco do carro. O gesto piedoso deu ânimo.
Sabia que a cobertura não teria hora para acabar.

Em um raro minuto de descanso, encostei no capô do carro e rezei para São Pedro.
Nasci no Rio e nunca tinha visto tal revolta natural.

Por volta das sete da noite, a chuva diminuiu.
Cheguei em casa às 10 e, por orientação do departamento médico da empresa, no banho, lavei o corpo com uma mistura de cloro.

 Olhei no espelho do banheiro e disse a última frase do dia:

_Parabéns Mariana. Muitos anos de vida.

Aquela terça-feira de abril era dia do meu aniversário...

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Certezas?

Tenho algumas certezas na vida. Sei que um dia vou morrer.
Também sei que, enquanto for repórter, trabalharei no Dia de Finados.
Mais precisamente, em algum cemitério da cidade. E, embaixo de chuva... Em doze anos de carreira, nunca escapei.

Em 2008, lá estava eu em um dos maiores cemitérios da América Latina. O Caju na zona portuária. Comecei a reportar o movimento de visitantes cedinho. Eram esperadas milhares de pessoas.
Depois de inúmeras entradas ao vivo, tinha a missão de gravar reportagem para o RJTV. Seguimos em direção aos túmulos das celebridades, que ficam mais cheios.
No canto direito, onde descansa Noel Rosa, umbandistas entoavam canções do poeta da Vila.
Entre charutos e tambores, ganhei até um passe.
Nunca soube se Noel era ou não umbandista...
Mas, foi bonita a homenagem.
No meio da multidão, surgem dois coveiros. Dois senhores, veteranos das sepulturas, que vieram revelar à nossa equipe curiosidades mórbidas:

_Sabia que Dona Zica, viúva de Cartola, vinha visitar o túmulo dele toda semana? Trazia sempre uma florzinha branca, rezava e cantava baixinho.

_Já Jamelão, intérprete da Mangueira, foi sepultado com elásticos entre os dedos. Parece que ele tinha mania desses elásticos.

A revelação mais intrigante porém, veio depois:

_Tim Maia está enterrado aqui há um tempão. E, de uns meses pra cá, ele deu pra cantar à noite. Outro dia, ouvimos o repertório quase todo.

_E aplaudiram ao menos? _perguntei

 _Claro! Somos fãs do cara.

Depois da conversa, decidimos ficar perto do túmulo de Tim. O cinegrafista deixou a câmera gravando sem parar. O sol foi se pondo. O cemitério, esvaziando. Nos propusemos a ficar além do horário.
Podia partir daí uma inédita reportagem para o Fantástico, nos dez anos de morte do cantor.
Eu ainda seguia corajosa. Quando realmente anoiteceu, veio o receio.
Se ouvisse um "Vale Tudo" ou um "Me dê motivo" de repente? Ia ter correria.

Foram horas em silêncio sepulcral na expectativa. Os dois coveiros trabalhavam há mais de 20 anos no Caju. Estavam danados com a timidez de Tim:

 _Não vai cantar hoje não, é? _clamavam.

No caso dos coveiros, eram três as certezas:
Eles sabiam que um dia iam morrer,que iam trabalhar sempre no feriado de Finados, E que almas penadas existem.

Tim Maia ficou mudo naquele dia. Não apareceu para o show.
Talvez, fosse ele mesmo...

sábado, 30 de outubro de 2010

Marcenaria

A serra afiada dilacera as ripas.
Som de esmeril ao nascer do sol.
Nos fundos da casa de Búzios, o improvável: uma carpintaria completa.
Estantes de ferro escuro, maquinário pesado, ferragem pelo chão e o radinho AM, aos berros, segue a estrela solitária.
Guiando o corte da tora, com precisão, dedos longos de um velho calvo.
Aquele senhor, capixaba, caxias, saíra menino da acanhada Alegre para o mundo. Estudo e empenho carimbados no passaporte.
Em seis das principais capitais dos quatro cantos, encarnou o modo, a linguagem, a posição de um país.
Carreira sólida como o toco de Araribá, prestes a ser moldado.
O Embaixador, que não é José, é João, vira carpinteiro.

Marcenaria amadora, familiar e intuitiva.

Antecipou o futuro.

A neta indócil, por vezes, invadia o ofício atraída pelo cheiro de cedro. Pelo alarido.
Obediente, apreciava de longe o voo das farpas.
Depois de prontas, cadeiras, casinhas de boneca, de passarinho, ganhavam cor em pinceladas infantis. Uma lambança.
Criação lixada, virava tela para respingos juvenis.
Aquarela a vista e o mar de Manguinhos, debruçado na frente, ficava de lado.
Virava miragem.
Aos seis anos, a pirralha espoleta, repleta em piolhos e bichos do pé, queria cantar, encenar, falar e falar...

_Depois do almoço tem show na varanda, tá vovô?, intimava ela.

Lá vinham então coreografias intermináveis, monólogos desavergonhados, teatrinhos toscos com participações, nada voluntárias, da tímida irmã mais nova e do primo constrangido.
Perspicácia latente do diplomata, mestre em negociações internacionais, em avaliações vocacionais, farejou a verve da magricelinha.
Numa manhã de ventania, respondeu, singelo, aos anseios da neta do meio.

Na bancada, barulho estridente, sujeira, suor. Rabiscos, lavras, aparas, entalhes.
Num encaixe simples, duas peças envernizadas.
Por fim, a cola de sapateiro uniu o quebra-cabeça do destino.

Presente intrigante.
É uma ferramenta? Um martelo de madeira?

_Não, responde o Embaixador.
_É seu primeiro microfone.

Quadrado, sem charme, é verdade. Na ocasião, João também reconhecera em riso.
Logo personalizei o mimo com iniciais em purpurina cor de rosa na canopla. "S.G." ou "Super Gata". Auto elogio típico da insegurança adolescente.

Nas mãos da menina, pra todo lado, o novo brinquedo preferido.
Parceiro que, mesmo afônico, explanou ao balneário o desejo inconsciente, oculto.

Marcenaria familiar, intuitiva.

Antecipou o futuro.

Sigo com ele em punho, vovô...

domingo, 24 de outubro de 2010

Democracia

Sou Mariana, torço pelo Flamengo, tenho medo de avião e, apesar da alegria natural, por vezes, sinto-me só.

E sim, uma pedra atingiu-me recentemente.

Naquela manhã, a jornada começou em um Centro de Convenções acompanhando o governador Sergio Cabral na abertura de uma feira de agências de viagem. O rádio toca:

 _Vá para Campo Grande. Sua equipe é a que está mais perto. O candidato Serra fará caminhada no calçadão no bairro. Ele segue de helicóptero. Se vocês não saírem agora, não chegam a tempo_ disse a subchefe de reportagem.

Seguimos por Santa Cruz. O carro ficou em um estacionamento próximo. Descemos antes, com medo de perder imagens. Fomos a pé atravessando às pressas o comércio da região no rastro das bandeiras do partido. O tucano chega embalado por intermináveis apertos de mão.

Um pequeno grupo inicia um protesto. Olhei de soslaio, sem muita preocupação.
De repente, mais militantes do partido adversário se aproximam.
O cerco então ganha a atenção dos jornalistas.
O calçadão perde espaço. Fica estreito. Lojas fecham as portas.
A guerra barulhenta de jingles não é mais só de sons. Invade o corpo a corpo.
Avancei esgueirando-me entre a multidão enfurecida.
Num relance, vejo Serra envolto em cordão de braços, sem chão para pisar.
Depois, com as duas mãos na cabeça. Algo acerta-me o crânio.
Sangro e saio de cena.

Não sou eleitora de Serra, não sou eleitora de Dilma. Não sou fita-crepe, não sou de pedra.
E sim, algo fez-me doer. Carrego agora um peso morto. Sólido. Bolinhas de papel? Bexiga d´água? Não importa. O que abriu-me o couro, caiu como maçã de Newton.
Despertou reflexão muito mais ampla.
Tem alcance maior que objetos não identificados.
No pós-pedrada, sou incondicional.
Defendo com fervor incomum a liberdade política,o ir e vir, a exposição de ideias, a imprensa livre.
Sem bloqueios ou cerceamentos.
O pensamento parece medíocre e utópico diante das conjecturas do pesquisador inglês sobre a gravitação universal. Para mim, merece a mesma atenção.
Por enquanto, anseios que permeiam meus sonhos.
Na vida real, não sei em quem votar.

Sou Mariana, torço pelo flamengo, tenho medo de avião e, apesar da alegria natural, por vezes, sinto-me só. E sim, aguardo a DEMOCRACIA atingir-me a cuca. Abrir uma nesga profunda.
Será esta a ferida que não pretendo sarar.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Até Cansar


Tempo precioso.
Que voa feito gavião.
Perco-te em pensamentos?

Tempo dourado.
Da juventude veloz.
Desperdiço-te em teimosia?

Tempo meu...
Seja amigo da intuição.
Compasse o ritmo da insistência.
Confirme, em segundos, a descoberta.
E, em minutos, minha certeza.

Que ponteiros parem os instantes.
Que horas soprem rompantes.
Deixe-me seguir o caminho cruel.

Na paixão, esqueço que tens fim.

Tempo. Dê-me mais tempo.
Não quero partir das minhas vontades...

domingo, 3 de outubro de 2010

Aposta


Eleições presidenciais de 2006.
Lula lutava pela reeleição.
Geraldo Alckmim tentava arrastar o pleito para o segundo turno.
Cheguei ao trabalho cedinho. Primeira tarefa?
Acompanhar o voto do então prefeito do Rio, Cesar Maia.

A zona eleitoral onde vota o democrata fica no Hotel Intercontinental em São Conrado, na zona sul. Maia é sempre um dos primeiros a chegar à seção, com sua indefectível jaqueta azul marinho e um jornal embaixo do braço.

As pesquisas apontavam para uma vitória de Lula, com pouca chance de novo embate nas urnas naquela eleição.
Logo cercado por jornalistas, Maia foi taxativo:

_Não tenho dúvida. Haverá segundo turno. Fiz meus cálculos hoje de manhã.

Contestamos a afirmação apresentando os recentes dados dos institutos. Números que não desanimaram o alcaide.
Em uma das mãos, eu empunhava o microfone, na outra, segurava meu telefone celular. Lembro que o aparelho era dos mais modernos da época.
Ganhara da operadora como bônus em promoção. Estava tinindo de novo.

De repente, a proposta de Maia:

_ Tenho tanta certeza que Alckmin vai com força para o segundo turno que sou capaz de apostar com você.

_ Apostaremos o que prefeito?

_Você me dá seu celular se meu candidato for para o segundo turno, e se ele não for, te dou meu apartamento_ em tom irônico.

Aposta firmada com aperto de mão e até registro dos fotógrafos presentes para a posteridade.
Encerrei a entrevista com o sonho vivo da casa própria.
Comecei até a programar a mudança...

No dia seguinte, a aposta ousada do prefeito foi comentada na mídia. Virou notinha de coluna política no jornal.

Meu sonho foi curto. Chegou ao fim logo após a apuração.

Alckmim conseguira votos suficientes para prolongar o duelo com o petista.

Semanas depois, em conversa com a assessora de comunicação do prefeito, Agatha Messina, o assunto voltou:

_ Cesar Maia, outro dia, lembrou da aposta que firmou com você. Está esperando o telefone novo.

Na manhã seguinte, enviei um cartão pessoal ao gabinete da prefeitura.

No envelope, o recorte da foto de um celular e a frase: Caro prefeito, Devo, não nego, pago quando puder... Por hora, guarde este telefone de papel no bolso. Eu tenho missão bem mais árdua: Guardar o apartamento na memória.

sábado, 25 de setembro de 2010

Homo Gênio


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos
Vira uns de pernas para o ar
Põe uns em cima dos outros

E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono

Ele invade minha intimidade
E até me constrange
E se diverte com meus gritos
Acalma meu rubor
Põe as pernas sobre as minhas

E bate palmas sozinho
Sorrindo para minha entrega.

Ele se descontrola de desejo
E às vezes expõe seu fervor
Me prende em casa ao som dos pingos
Arrefece meus vôos à vinho
Põe as mãos em meu couro

E durmo no embalo da respiração
Sorrindo para o encontro.

Ele quer mais
Quer sempre mais, não só de mim
Perfura sutilmente meu bloqueio
Desafia minha paciência
Põe lenha no fogo

E bate palmas sozinho
Sorrindo para a sorte.

Ele é onipresente nas canções
No dedilhar da viola aprendiz
No riso franzido de nariz
No Rolling Stones do fim de noite

Põe no pires meu orgulho

e bate palmas sozinho
Sorrindo para mim.

Ele é homem.
Homo Gênio.

Escrito depois de ler Fernando Pessoa numa tarde chuvosa.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Fragmentos

Chuvisco revela o cheiro da terra. O sol se esconde cor de rosa. E vem a lua. Corta o céu com sorriso crescente. Rastro de estrela aponta o caminho. Vênus que brilha em minha fachada. De tão boa, a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger. Vontade de dar gritos, de ficar no chão, de sair, Para fora de todas as casas, de todas as lógicas, de todas as sacadas, e ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos. Entre tombos e ausência de amanhãs. Tudo isto devia ser qualquer outra coisa parecida com o que penso, com o que sinto, que eu nem sei o que é. Fui ao encontro de mim. Descubro. Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar. Neste texto, minhas palavras e fragmentos de poemas de mestres das palavras: Clarice Lispector e Álvaro de Campos.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Estupidez


Sou eu quem me governa.
Atravesso o asfalto liso.
Sem faixas para me guiar.
Longe de sinais luminosos que fream passos.
Egoísmo poderoso que arrefece automóveis, atropela os fracos.
A buzina é instrumento de tortura.
Nas frações de segundo do verde, propago o barulho vermelho. Cores da minha aquarela intolerante.

O carro sobre a calçada sai à reboque. Vou vê-lo de novo, eu sei.
Pago o habeas corpus. Estaciono de novo.
Rodas paralíticas, recém-nascidas, que enfrentem pistas aceleradas.

O toque estridente do telefone invade a cena do teatro.
Vida que não se desliga por outros personagens, que não eu.
E a garrafinha plástica, camuflada na entrada, largo no chão.
Estímulo à faxina do pós-espetáculo.

A areia da praia é túmulo dos canudinhos que lambi.
Daqui a cem anos, relíquias nas ondas negras do mar.
Feliz de quem achar.

Meus restos se misturam no gordo saco de lixo.
O que descartei, decomposto pelo tempo, jamais pela reciclagem.
Moscas varejeiras, insetos nocivos, garantem a eternidade.
Sou altruísta.

Não me interessa para onde vai o que expeli.
No fundo, torço para que esteja navegando nas águas da Lagoa.
Vai dejeto, faça os peixes boiarem podres.
Permeie a cidade com seu perfume.

Meus apertos líquidos se aliviam nos canteiros.
À luz do dia, brilham no tronco da amendoeira centenária do Leblon.

Me fascinam bueiros entupidos no temporal.
Guimbas dançam conforme a música alta que incomoda os vizinhos. Redemoinhos vigorosos da estupidez.
Retratos fiéis de mim.
De um Carnaval que não escoa.

Sou eu quem me governa.
Sou eu, um cidadão carioca.
Quero meu crachá, nêm.

domingo, 5 de setembro de 2010

Sábio Quintana


A equipe de reportagem seguiu para a Fiocruz.
Era a inauguração do borboletário: uma casa de uns quarenta metros quadrados, revestida de tela, com flores e plantas pra todo lado. Curiosos, adentramos o paraíso das borboletas com cuidado para não pisar em nenhuma.
O desafio maior foi fazer imagens de dezenas de insetos inquietos.
A cada virada de câmera, eles voavam em bando.
Sentei num banco de canto para acompanhar o trabalho hercúleo do repórter cinematográfico.

_Elas são muito arredias._ disse o especialista da Fundação.

De repente, um belo exemplar pousou, sorrateiramente, no dorso da minha mão esquerda. Era da espécie "Júlia" com asas alaranjadas e tamanho médio. Fiquei imóvel.
Já a borboleta estava a vontade.
Logo desenrolou sua lingüinha negra e pôs-se a sugar algo.
Para surpresa geral, a nova amiga adotou minha mão como puleiro.
Ali refastelou-se por uns vinte minutos.
Gravei, atendi o celular, caminhei e ela não ameaçou decolar.
O relaxamento era tal que "Julia" fez até pipi.
Duas gotículas quase imperceptíveis. Soube que é um elixir afrodisíaco...

_Um dos fluidos mais límpidos da natureza. Na China, é vendido a peso de ouro.

Na dúvida, colhi o material inodoro com o polegar, espalhei na nuca e agradeci o presente.

O especialista seguia impressionado com o atrevimento:

_Há tempos não via isso. Ela não quer mais sair daí.

Enquanto observava o descanso da borboleta em mim, lembrei das palavras do poeta:

"O segredo é não correr atrás das borboletas... é cuidar do jardim para que elas venham até você. No final das contas, você vai achar, não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você..!"

Por fim, a borboleta virou-se lentamente de frente, como se me encarasse. Abriu as asas e partiu.
Em seu repouso, ela não sugou.
Depositou foi inspiração em mim.

Viva Quintana.
Que venham as borboletas...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Primitiva

Primícias do amor inexplicável.
Afeto em seu primórdio inevitável.
De novo principiante.
Sente arder.
E disfarça privativo ardor.

De repente a primazia:
Esquece princípios.
Salta a privança.
Foge da prisão.
Irradia o instante em raro prisma.

Prima imagem indigesta.
Da tua festa primaz de mim.
Paixão primitiva.
Primor de sentimento.

Privilégio de quem é. E sou.

Primogênito dos homens.
Alvo principal.
Me faz primária.
Me faz princesa.
Brindemos à prioridade.
Sem privações. Ou priscos.

Só primaveras...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ousadia

Na sacada, à espera de ousadia.
A luz da lua morna percorre o castelo.
Ilumina a retina de paixão celeste.

O perfume da sorte florida irradia eletricidade, permeia o ar de batimentos.
Nada marcado. Intuição fresca é quem agita o peito.
Arrepios umidecidos pelo sereno da esperança.

Sopra o vento da certeza.
A princesa se apronta para encontrar o desconhecido:
Especiarias amaciam a pele, escova transpassa nós, madeixas entrelaçam em fita de cetim, beliscões coram a tez.

A matilha late no pátio de tochas.
Tranças a postos para arremesso na varanda.
Uma corda. Uma chave. Silêncio.

_Quem virá coração? Por que me iludes?
_Vou decepá-lo à espada de mim.

Luta inglória com rolha de vinho raro, da adega profunda dos anseios. Vence o enrosco insistente com carisma nato.
Derrama em cristal suas aflições. Se lambuza de verdade.

Coragem mistério! Felicidade genuína te espera.
Madrugada a dentro.

De repente, o grito seco.
Palavras vibrantes ecoam no vilarejo.
O belo jovem vence guardas da Independência.
Escala a fachada, invade o sorriso surpreso.
Toma nos braços sua prenda.
Um rompante.

Derretimento qual vela acesa.
Amor insofismável invade o aposento.
Apaga a altivez em breu de entrega.
Beijos infinitos, flutuantes.

Corpos se moldam mudos como escultura divina. Eterna.
Gemidos reencarnados ocultam alicerces do amanhã.

Como será o amanhã? O despertar do sonho?

Acorda afoita. Mais certa que antes: Ele virá em breve.
Montado em tordilho sem sela.
Entregará em bandeja de prata sua fé.
À tempo, em tempo.

Segue a princesa feliz na sacada.
À espera de destino oculto.

De ousadia.

Dorme moça.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Feliz de mim. Feliz de mim só. Somente só. Vontade de mim somente. Só de mim, só feliz. Vontade só. Feliz de mim. Feliz de mim. Só.

domingo, 15 de agosto de 2010

Adeus Mariana


O caudilho não queria falar. Rei da retórica, Leonel Brizola estava reticente. Lacônico com a imprensa há semanas.
A raposa política era o lanterna das pesquisas naquelas eleições em 2000. A tarefa da estagiária era entrevistá-lo a qualquer custo.
A reportagem só iria ao ar com a declaração de todos os candidatos à prefeitura.
Tentei por telefone em mais de quinze ligações.
Na última, um brinde da sorte:

_Alô, quem fala? _Boa tarde candidato.
_A tarde é mesmo boa, mas não vou falar com jornalistas._disse ele.
_Aqui é Mariana da Rádio CBN.
_Mariana? Sabe que estava pensando nesse nome agora?

Surgiu um Brizola nostálgico.
Desatou a cantar uma canção com meu nome. Tinha até alguma afinação.
A letra era uma despedida. Sobre um homem que decidira largar uma mulher durona. Minha xará dos pampas.
Depois de soltar a voz, revelou que se tratava de uma composição antiga que marcara sua adolescência.
_Cantava esta música para minha primeira namorada em serenatas. Mariana era uma gaúcha brejeira. Quase casei-me com ela. Nunca mais encontrei um disco do grande intérprete. Uma pena.

Brizola se referia à Pedro Raimundo. Típico cantor sulista. De voz melodiosa e pouco conhecido na Região Sudeste.
Resumo da serenata telefônica: O candidato cantou, mas, não falou. Encerramos a ligação em seguida. Meu chefe não gostou. E eu, não me dei por vencida.
No mesmo dia, invadi a Central de arquivos do Sistema Globo de Rádio, uma das mais completas do país.
Os técnicos encontraram a machadinha que quebraria o silêncio de Brizola: Raras gravações do tal cantor gaúcho em vinil, incluindo o hit “ Adeus Mariana”. Gravei a fita-cassete com uma música. Na época, gravadores de CD ainda não eram acessíveis. Deixei no prédio de Brizola, em Copacabana, com um cartão: Para o senhor recordar. Envio apenas uma das dezenas de músicas que encontrei na voz de seu cantor preferido. Se quiser ouvir as outras, ligue para a redação."

Minutos depois, o telefonema emocionado:
_ Mariana, o presente me fez remoçar. Sinto-me revigorado para continuar minha campanha. Agora vai.

Não foi.
Brizola me deu entrevista naquele dia. Nunca mais se negou a falar comigo. Me atendia prontamente, sempre cantando. Depois das eleições, ganhou outra fita-cassete. Dessa vez, com os dois lados repletos de canções.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Drink com Fidel


Horas de plantão no carro de reportagem da Rádio CBN.
Faustino e uma jovem estagiária decifraram todas as palavras cruzadas. Motorista decano do Sistema Globo, Faustino era fumante inveterado.
Um Galaxy atrás do outro.
O bigode não amarelava. Seguia negro feito pena de tucano.

Já faz 11 anos. Fidel Castro estava no Rio. Protegido pela Segurança Nacional e de Cuba. Um cerco de 40 homens.
Na porta do hotel, em Copacabana, colegas renomados a espera de um adeus que fosse. Vencidos pelo cansaço, foram embora.
Nós? Ficamos. Não por vontade própria. Por ordem do chefe de reportagem, Luciano Garrido. Cheio de intuição.
Anoiteceu. O bairro fervia com ambulantes e prostitutas nas calçadas.
Já passava das 11 e veio a surpresa:
El comandante e cerca de 30 guardas saem à pé. Parecia miragem. O grupo seguiu para o bar “Havana Café”, de um hermano da ilha. Sentaram na varanda.
Eu e Faustino logo ocupamos mesa próxima, sob olhar atento dos guarda-costas. O líder cubano abraçou o dono do bar e pediu um Daiquiri.
Pedi o mesmo, propositadamente.
Minutos depois, desfila o garçom com os dois drinks em copos longos. Serviu primeiro o cliente ilustre. Fidel pergunta para quem é o outro copo. O garçom aponta para mim. Recebi então um olhar firme, emoldurado pela vasta sobrancelha.
Em pouco tempo, Fidel pediu mais um, e eu, também.
Foram mais três rodadas em prol do approach. Os seguranças relaxaram.
Chegamos ao estágio das risadas. Em meia hora de conversa sobre Pelé, convenço um dos guardas a sugerir uma entrevista a Fidel, com a promessa de conseguir um autógrafo do rei do futebol.
Incrivelmente, atendeu meu pedido.
Fidel fez sinal. A estagiária tremeu. Suou.
Aproximei-me com gravador em punho.
Uma figura imponente, mãos robustas, unhas feitas e voz desafinada.
O perfume era legítima alfazema.

_A ti te gustan Daiquiris? _perguntou Fidel
_Si Comandante. _ disse, trêmula.
_ Tienes muy buen gusto para lo que tomas.
_ Gracias.
_Me tengo que ir, buenas noches, senhorita.

Ainda tentei esticar a conversa... Em vão.
Lá se foi minha entrevista exclusiva cercada por homens armados.
Voltei para a mesa, frustrada. Bêbada de rum.

O chefe Garrido foi poupado do episódio. Nunca soube do encontro.
Um pacto entre mim e Faustino, agora reverberado.

Ao menos, saímos premiados.
Quando pedi a conta, a cortesia:
_ Pode ir tranquila, repórter. Fidel gostou de beber com vocês. Fez questão de pagar a conta.

domingo, 8 de agosto de 2010

Paisagem

Belo monte. Surge imponente entre as nuvens. Reflete no espelho d´água. Enfeita o horizonte. Enfrenta a tempestade, a solidão. Impávido colosso. Brilha feito ouro ao sol. De flora abundante. O ninho do gavião. O quintal dos primatas. Atraente. Espia do alto. Provoca mosquetes. Atiça estacas. Arrebenta cordas. Destroça martelos. Aos insistentes, o ar rarefeito. A pressão atmosférica. Pedra dura, desconfiada. Sonega o furor. Sombreia o óbvio. Mesmo imóvel, escapa da sorte. No ápice, uma avalanche. O vento cortante. Belo e covarde monte. Não te quero tolo. Hoje, abandono a trilha. Rasuro a escalada. Dobro a bandeira. Sublimo o desafio. Fechei a janela. Te apaguei de minha paisagem.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Generosidade


Na embriaguez, abrigo.
Na ousadia, incentivo.
Na covardia, compreensão.
Na entrega, tesão.
No silêncio, espaço.
Na energia, cansaço.
No escuro, ilumino.
Na dúvida, opino.
Na dor, o trato.
Na fome, o prato.
Na oferta, fidelidade.
No vazio, generosidade.
No beijo, magia.
No temor, alegria.

Te dou.

Sabia?

sábado, 24 de julho de 2010

Filosofia de Caminhão

"Encha uma bacia com água. Puxe-a pra perto e o líquido escorre pro outro extremo. Empurre a bacia pra longe e o líquido se aproxima de você."

O provérbio no pára-choque de um caminhão, circulava reluzente como neon na via expressa. Anotei a frase no caderninho enquanto seguia para uma reportagem na Baixada Fluminense num domingo de plantão.

A experiência sugerida parece fácil.
Faça em casa e conjecture.
Água, apesar de vital, é insípida, incolor e inodora.
Quer um desafio bem mais instigante? Ponha um homem na bacia.
Mas não vale um cara qualquer. Me refiro ao macho que ataca os sentidos. Olfato, paladar, visão.
Como afastar a bacia?

Avistei o tal caminhão do provérbio parado no posto de gasolina. Paramos estratégicamente para abastecer. Não resisti e me aproximei da carreta abarrotada de ovos. Para minha surpresa, o motorista era uma mulher. Abordei a estranha. Uma mineira de uns cinquenta anos, magra, sorriso largo, braços fortes, mãos calejadas, mas com unhas impecávelmente coloridas de vermelho. Ali mesmo, à beira do asfalto, a caminhoneira deu um banho de sabedoria. Uma entrevista informal sobre a vida que vale a pena ser reproduzida.

Aquela senhora com sotaque carregado aprendeu a combater as desiluções nas curvas acentuadas das rodovias.

_Fico apaixonada sem ser correspondida? Sumo nas estradas sem deixar rastro. Se ele sentiu algo por mim, que venha atrás das marcas do meu pneu._disse ela.

Entre um cafezinho e outro seguimos com a aula:

_Quando o moço é diversão. Balanço a bacia sem medo. Pra lá e pra cá. A correnteza fica mais forte quando me convém. Mas não passa de marola.
_A onda perfeita requer sofrimento. Desprezo. Quando menos se espera, ela surge para você surfar.

E olha que em Minas não tem praia... Mas tem bacia...
Pelo visto, muita bacia...

_ Tenho cinco filhos, cada um com um homem diferente. Faço o que eu quero da vida. Todos os meus maridos querem voltar pra mim. No ano que vem me aposento e aí vou me aquietar.. Mas não vou escolher nenhum deles. Quero um cabra novo para mandar em mim.

A motorista ensina que para agir assim, é preciso conhecer os meandros da estrada. Ter quilômetragem.

_Menina novinha num guenta, não. Fica correndo atrás. Sufocando o macho. Se soubesse disso aos vinte, num teria sobrado um pra contar história. Gargalhada geral.

_Programe o percurso direitinho, igual eles fazem. Esqueça o coração batendo forte e aja com a cuca. Suporte a solidão, você num vai morrer. O pneu pode furar no caminho. Nesse caso, troque logo e siga em frente.

À essa altura, esqueci que tinha uma reportagem pra fazer.
A prosa com a guru do asfalto seguiu por mais vinte minutos.

_ Tira o pé do acelerador. Vai só regulando com a embreagem, sem pressa. Na maciota. Senão, espanta o alvo. A água vaza pra fora da bacia, entendeu?.
Você não tá gravando isso não, né filha?


Não, Dona Vani. Só na memória...
Boa viagem.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Olá


Iansã queria molhar.
Na manhã cinzenta, a busca por respingos valiosos da orixá.
Caminhei a pedra portuguesa já manchada por meu rastro.
A chuva morna deslizava a pele, a alma.
Turistas observavam a alegria de viver no Rio, faça sol ou faça temporal.

No Arpoador, vinho chileno em mesa debruçada na areia.
Nas orelhas, a provocação de Stacey Kent.
No horizonte nublado, um olhar castanho de pestanas longas.
Aproximação elogiosa: o monossilábico, mas eficiente olá.

O amigo atleta surgira de bicicleta oferecendo outra taça.
Ocupou, sem convite, a cadeira oposta com cachos de mel.
Conversa fluente com o inesperado.
Horas de coincidências ensopadas por gotas que encorpavam.
Folhas da amendoeira evitavam a diluição do encontro.
Ficaríamos até o fim. Até o granizo. Até ressecar.

A praia, mágica, toda nossa e do garçom impávido.
Era como se o SOL estivesse brilhando.
Bronzeamento intenso sem fator de proteção. Sem filtros.

A garrafa se vai. E eu também.

No caminho de volta, o encontro provocado.
Carona na garupa debaixo do toró.

_Me abraça forte, vou acelerar.

Enxugo o rosto nas costas úmidas.
No balanço do pedal, esqueço a cidade.
No auge da embriaguez, um mergulho no mar exclusivo e quente de Ipanema. De roupa e tudo.
O braço forte salva do caldo, da descrença.

Um beijo roubado. Salgado.
Mais chuva pra brindar.

Iansã queria molhar.

domingo, 11 de julho de 2010

Tarada

O camarim de uma repórter é itinerante. Improvisos em movimento... Batons e escovas no carro acelerado, no helicóptero turbulento, na calçada escura. Quinquilharias viajam conosco.
São testemunhas do caos, da violência, do tumulto.
Itens que deixam a pia para nadar contra o fluxo dentro da bolsa.
Ao olhar o mapa do estado, descubro que o Rio ficou pequeno.
São poucos os recantos inexplorados.
Na tela, divido imagens. Na mente, guardo os bastidores.
Depois de abraçar a profissão, acompanho telejornais com perguntas íntimas:

 _Como será que essa jornalista chegou até aí? _Onde ela vai dormir? Vai tomar banho hoje?

Para mulheres, o desafio é maior. Envolvidas pela adrenalina da notícia, muitas vezes esquecem do trivial. Da bexiga cheia. Quando começa a apertar, é preciso perder a cerimônia.
Coleciono banheiros inusitados em minhas peripécias jornalísticas.
Certa vez, de plantão na porta de um hospital público, busquei alívio na funerária em frente.
No pequeno banheiro embaixo da escada, um depósito de caixões infantis.
Um pipi mórbido.
Numa casa humilde nos confins de Itaboraí, não tinha vaso sanitário.
Tive que mirar num buraco aberto no chão de terra batida.
Um pipi aéreo.
Como vêem, me libertei de frescuras em prol das necessidades básicas.
Uma única fobia profunda, porém, ainda me abate. Desatina.

Há poucos meses, numa terça-feira de trabalho insano, percorri a cidade em reportagens alucinantes. Tiroteio na favela, assalto na auto-estrada. A última tarefa seria entrar ao vivo às sete da noite.
A equipe me aguardava em frente ao Hospital do Fundão. Lá daria as últimas informações sobre o surto de gripe suína. Cheguei em cima da hora. Tinha então vinte minutos para apurar as novidades antes de entrar no ar. Não conseguia assimilar o balanço mais recente da doença. Dados divulgados pelo médico se perdiam no vento. Algo me incomodava.
Foi aí que lembrei. Estava apertada há tempos.
Descobri um banheiro nos fundos da cantina da Universidade.
Entrei esbaforida.
Uma aluna alertou que a luz estava queimada e se prontificou a vigiar a porta que não tinha maçaneta.
Um pipi no breu.
Melhor assim. Só depois vi onde estava pisando.
Quando abri a porta, um feixe de luz revelou o pior: O chão estava repleto de baratas cascudas.
O inseto repugnante age como criptonita em meu heroísmo.
Saí às pressas sem lavar as mãos.
Já junto da equipe, operadores de áudio iniciam o ritual de instalar equipamentos e fios em minhas costas para a entrada no telejornal.
De repente, um deles diz a frase funesta:
 _ Eu vi um bicho entrando na sua calça.
Senti a inimiga percorrendo a canela. Provavelmente saiu clandestina daquele banheiro fétido agarrada a meu jeans. Perdi as estribeiras. Pulei feito milho em óleo quente.
A intrusa continuava subindo. O jeito foi baixar as calças.
Medida extrema, acertada e rápida. O semi strip-tease durou apenas o bastante para eliminar a cretina.
A ousadia da barata foi castigada com um sonoro e mortal pisão do cinegrafista.
Caí em prantos enquanto meus colegas aplaudiam a atitude inédita.
Os quatro não viram nada além de alguns segundos de calcinha cor de rosa.
Rendinhas ao relento marcaram o imaginário.
Até hoje ouço comentários.
Dois minutos depois, lá estava eu no vídeo.
Sem lágrimas e cheia de números para divulgar.

Improvisos em movimento...

terça-feira, 6 de julho de 2010

Teimosia

Teimosia é fluido. Saliva que não seca. Brota voluntariosa. Azeda o gosto. Esguicha a estima. Viscosa. Penetra o lábio. Jorra o beijo . Pára o tempo. Baba a insistência. Teimosia é cuspe na cara. Agride sem ferir. Escorre sem ver. Muda o prumo. Umedece a ética. Desatina. Seque a secreção. Desidrate a goela. Murche o músculo. Marrete o crânio. Rasgue entranhas. Tranque o peito. Depois, lamba as feridas.
Homenagem singela ao poeta Augusto dos Anjos, mestre da escatologia.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Segredo

A vida é um livro em construção. Uma prova de resistência.
Até aqui, meus capítulos eram públicos.
Não havia cola ou grampos limitando a leitura.
A consciência diária de quão breve é o tempo, catapulta ao intenso.
Não faltam situações vibrantes. Surpresas agradáveis. Começos no primeiro pelotão.
Passeio pelo inusitado com destreza.
Preencho páginas em branco com pique de atleta sem medo de contusões.
A maratona segue com a divulgação do feito.
Uma exímia e carismática contadora de histórias. No almoço da família, na rodinha do Baixo, não levanto a mão para pedir a vez. Tenho sempre à volta público ávido por detalhes e a conversa flui sem cronômetros.
Vibro em conjunto, sofro acompanhada.

Entre as estratégias para completar o trajeto dos trinta quilômetros, ou trinta anos, sem dores musculares está um sachê. Na fórmula, carboidrato e pudor. O ritmo da corrida capta energias externas.

Hoje, censuro anúncios alegres. Olho por onde piso.
Vislumbro o final feliz.
Conquistas em andamento devem ficar longe das pistas, até que se cruze a linha de chegada. Sucesso revelado pela bandeirada final, jamais pelo corredor.
Já tenho uma estante de medalhas. Vitórias puras, livres de obstáculos invejosos. De falsos aplausos.
Para não queimar a largada, elejo ouvidos privilegiados.
Não necessariamente orelhas antigas, irmãs ou que apuraram a audição ao passo das minhas. A escolha é pura intuição.
Olho no olho. Ou um pouco mais que isso.

Segredos agora ficam em baú de antiquário.
A chave só sai do molhe quando a caminhada requer opinião especializada, de quem acompanha o pingar do meu suor.
Fatos são então compartilhados em aura de genuína torcida.
Tenho chaves de outrem em mãos.
Remexo bugigangas alheias quando solicitada.

Confiança se conquista aos poucos, aos centímetros.
O raio de atuação é mínimo.
Quando parceiros de treino são descobertos, trate-os com generosidade. Eles merecem ver-te superando limites. Por vezes, propõem exercícios duros em busca da sua velocidade. Do tiro perfeito. São anabolizantes naturais.
Não tente ditar a cadência das passadas.
Apenas conte e ouça. Sem ultrapassagens.
Siga avançando o asfalto lado a lado.

O frasco de cola, o grampeador, a chave, não precisam ficar só sob sua guarda. Basta não jogá-los para a arquibancada.
Troféus a vista.

domingo, 27 de junho de 2010

Ode às estreitas genuínas

Sou moça de contornos sutis.
No balneário das musas de albumina, ossos proeminentes podem ser incômodos.

Magricelas fazem malabarismo no sinal. Escondem a virtude em babados e estamparias bufantes, como loba que eriça pelos para atrair o macho.
Pobres cambitos. Testam operários e passam sem assobios.
O doce balanço a caminho do mar é azedo. Apelidos infames repercutem no salão:

 _Espia só o esqueleto ambulante!

No embate com a profusão de seios fabricados, traseiros eqüinos e cabeleiras alisadas a ferro, uma competição desleal. Naturais versus biônicas.
As magras saem destruídas do primeiro confronto.
No dia seguinte, a busca pela lingerie encorpada, a blusa decotada e por fim, o analista.

Agora saibam: A derrota dura pouco. A vitória vem. Chega trotando lenta e saborosamente para estreitas genuínas. Essas sim, conhecem seu potencial. E como é vasto, acreditem.

Pratos fartos, calorias a perder de vista, combatidas de pronto pelo amigo inseparável, o metabolismo. Alegria de viver e de comer.
Entre a caneleira e o canelloni ficam com la Pasta, com muito parmesão por favor.
As medidas são portáteis e suaves. Carne que molda pontos cruciais. Gordurinhas bem localizadas. Malemolência na pista. Leveza perfumada. Energia de sobra.
As curvas estão ali, basta saber dirigir na estrada. Manobras surpreendentes não se revelam em shortinhos colados. Ficam na penumbra a espera de Fiat lux.
E quem faz a luz, sabe do que estou falando.

A casa do vizinho é espaçosa. A delas é pequena e tem cor.
Por vezes, adorariam um gramado mais verde em alguns canteiros...
Compensam então, com telha avermelhada no topo. Cobertura moderna, impermeável, inteligente.

Mulheres são insatisfeitas por natureza. Todas mudariam um detalhe ou outro no quintal.
As magras não são diferentes. Precisam apenas de estima arquitetônica.
Uma obra sem bisturis ou enxertos.
A ferramenta mestra é um engenheiro sabichão e só.

Feita a reforma na confiança e um abraço:
Quem visita vira hóspede.
Para valorizar a carcaça, abundância, não de nádegas, mas de charme.
Dom que escapa ileso da gravidade.

As fininhas natas também eriçam os pelos, só que sem intenção de atrair a matilha.
O arrepio é focado. Visa um alvo por vez.

Sim. Sou moça de contornos sutis. Com orgulho.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Rabiscos na Caverna


A comunicação nos destaca entre as espécies.
Agora, a descoberta: A retórica, que tanto vangloriamos, é também dúbia e perigosa.
O uso incoerente, displicente, tem alcance que os olhos vêem e o coração sente.
Diálogos jogados podem doer tanto...
Falar é bom, mas, o verbo pede moderação.
O Dizer globalizou-se.
Bebe de fonte tecnológica e tem sede.
Ganhou status na internet pro bem ou pro mal.
Sabemos mais uns dos outros, porém, não estamos juntos.

A conversa? É no chat. O bate-papo é virtual. A paquera, via Skype.

A frase deslocada no blog, o termo deplacê em SMS, exclamação a mais ou a menos na grande Rede, pode desviar caminhos, implodir o HD do destino, se é que ele existe.

Eloqüente que sou, só aprendi na maturidade a lidar com tal virtude.
Mesmo com certa cautela literária, ainda derramo água fora da bacia. Provoco interpretações e, subseqüentes, inundações.
Na dúvida melhor calar, fechar a bica ou o bico.

Palavras ambíguas transbordam na tela, agitam o peito, inflam o ego e, não raro, decantam perversas na memória. No planeta interligado e ligeiro, a abundância de substantivos é um choque térmico. Entorna como balde de água gélida sobre a brasa do inesperado.

Para que falar o que se pode manifestar em gestos, olhares, aromas?

Hoje deleto exageros, enxugo exaltações. Raciono.
Busco o sublime encontro de energias irmãs e essas, não falam, não molham. Queimam.

Não quero perguntar quem és. Quero descobrir.
Não quero ler seu perfil. Quero ver-te.
Não quero escrever sobre ti. Quero encarar-te.

Um dia em encontro único, ainda hei de dançar com instintos a música muda. Deixarei alegrias gravadas em desenhos rupestres nas cavernas paleolíticas.

Sentimentos são simples como símbolos riscados na pedra.
Nada de letras, só figuras.
Hoje, O DIZER não enobrece.

O QUERER é o que me destaca entre as espécies.

sábado, 19 de junho de 2010

A vida alheia

Um ano e meio na Gávea.
Em dias úteis, o apartamento vira quarto de hotel.
Clássica tríplice dos proletários: Banho, jantar e cama.
Terça passada, madruguei, trabalhei e, milagrosamente, voltei cedo ao meu, digamos, Meridien.

Na agenda, nem manicure, nem ginástica, muito menos exame periódico.
O compromisso era um só:

Ficar em casa. Um deleite. Uma riqueza.

Apreciei, sem pressa, a chegada do sol. A hora exata da invasão de luz na fachada. Raios que inspiram o humor de qualquer um. Som de passarinhos. O recanto bucólico recebe visitas encantadoras de manhã. Andorinhas, periquitos e até tucanos debruçam na varanda. Como quase nunca estou em casa de manhã, a revoada se espanta comigo.

Quebrei o gelo oferecendo parte do meu café da manhã.
Morangos e bananas divididos irmãmente.

Sem alarmes ligados, o sono da beleza no sofá, agarrada a quatro almofadas.
Um aroma inebriante de carne assada toma conta da sala alertando que é hora do almoço.

João Pedro chega da escola e exclama na garagem:

_O carro da minha namorada está aí, mamãe!

Meu vizinho de andar tem apenas cinco anos. Um dengo só com a moça do fusquinha prata que vos escreve. Menino esperto. Ganhou bombom de sobremesa.

De repente, o aviso infeliz de que a vida segue lá fora: Toca o interfone.

_Quem fala? Pergunta a voz sinistra.
_É Mariana. Quem é?
_Cabo Ferreira da Polícia Militar.

Pausa para o inusitado. A veia jornalística infla feito balão com ar quente.

Uma patrulha chegara ao prédio para averiguar denúncia.
Uma mulher estaria sendo espancada aqui.
Vou pra janela incrédula. Lá estavam dois Pms invadindo com fuzis meu paraíso.
Ouço gritos agudos nas redondezas.
Sem susto, dei risada.

Era o diretor de teatro do terceiro andar ensaiando esquete com uma estrela global.
Atuação tão convincente, que alarmou a vizinhança.
Ensaio com imediata aprovação de público, crítica e polícia...
Soldado Marcos e Cabo Ferreira deram meia volta, frustrados.

Enquanto isso, no primeiro andar, o médico comemora gol da Nigéria.
Antes do fim do jogo, uma ambulância pára no portão para sequestrar o doutor.
A emergência acabou com a torcida. Calou a vuvuzela.

Começa a reunião de condomínio no pilotis. À essa altura, agradeço por não ser proprietária do imóvel. Desavenças e reclamações rompem o resquício de silêncio. Difícil mesmo é não ficar escutando. Como ignorar diálogos tão hilários? Pincei uma, entre as inúmeras frases de pura finesse literária do encontro:

_Você é um porco que joga guimba de cigarro no meu capô! Vai pagar a pintura, fumante imundo!

Moradores em franca batalha e eu, de pantufas, tomando chá de camarote.

Antenas continuaram ligadas no fim da tarde diante de barulho animado no andar de cima.
A moradora cinquentona, de namorado novo, embala o teto com um festival de percussão.
Peripécias sexuais que não se limitam ao quarto. Na cozinha foi um transe.
O casal que perdoe a intromissão mas, a calmaria da Rua, não encobre sussuros.
Muito menos gemidos vigorosos.
Como orelha não tem pálpebra, acompanhei boa parte da festa.

Feliz em saber que existe tal tesão entre coroas às quatro da tarde num início de semana.
Tudo muito saudável, muito constrangedor, muito divertido.
Deixo os pombinhos em paz e gasto minha energia pintando as portas da sala, amareladas pela intensa umidade.

Na escada, entre pinceladas na soleira de entrada, um desfile de agradecimentos:
A celebridade aplaude minha intervenção junto à polícia,
o garoto surge fagueiro com boca lambuzada de chocolate
e a vizinha devoradora flutua nos degraus.

Essa, nem me viu...
Ficar em casa. Um deleite. Uma riqueza.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Banquete

Revelo aqui paixão das mais reclusas:
Tem um dia do ano no qual me rendo a um ritual cristão, à moda da casa.
O dia de um amigo especial.

O carinho vem de longa data.
Canções juninas e preces ensinadas no colégio alertaram para o encanto do senhorzinho cândido que carrega uma criança. Devoção que começou um pouco abusada, no auge da adolescência.

Pobre Santo.
Recuperações escolares, indiferença do menino amado e até espinha na hora errada, eram motivo para velas e orações.

Hoje temos relação bem mais comedida. Agradeço muito e até peço, mas, só em ocasiões realmente desesperadoras.. Sempre bem sucedida.

No último dia de Santo Antonio em 2010, não houve acrobacias para escapar de reportagens. A escala de plantões, caprichosamente, ajudou.

Minha homenagem não foi à igreja. Raramente vai.
Prefiro conversas mais íntimas.

Naquela manhã de inverno precoce, refleti em dez quilômetros de calçadão.
Comprei frutas, flores e ingredientes.

Me pus a cozinhar um cardápio dos deuses. Dos Santos.
Diante do fogão, vinho tinto, trilha sonora, hortaliças, temperos e camarão graúdo. Pura meditação abençoada por um catolicismo adormecido, por hora latente, entre panelas, grelhas e molhos.

Cheguei a fazer convites para desfrute conjunto do banquete.
Nem precisava...
Já tinha um convidado para o jantar.

É certo que no fim do farnel, meu querido Antonio, piscou os olhos.
Eis que surge visita inesperada, que não chegou a azedar a comida.

Santo preferido tem poder.
O intruso, o buquê e o rosê foram prontamente defenestrados.

De volta ao batente de alma lavada e bem alimentada.

Com a benção do amigo na carteira, nas pegadas, na sombra.

Salve!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Coagulação

Segue a vida. Sem arrependimentos.

Manhãs rosadas, tardes atribuladas, noites geladas, vinho, aquisições musicais, festa, gargalhadas e dança. Ah! A dança. Em par, entrelaçada, nuca perfumada, inaltece a alma.
 
 
Infortuito. Telefone maldito de cabo infinito e alcance imediato, toca impiedoso.
Batidas enervam, diástole sufocante.
 
 
Do outro lado, o estrago. A nesga de ferida aberta.
 
 
Enfrento num relance impensado. Memória feroz de um timbre que não esqueço.
Feliz da tecnologia ainda sem aroma.
Amenidades e farrapos. Histórias e estórias remetem ao esforço de outrora, ao desperdício.
 
 
Nostalgia e asco em uma única frase. Vícios, clichês, dejavus.

Passado de guerra e paz, no front, em segundos, à espreita da bandeira branca, de um descuido da estima, um vácuo da carência.
Explica, implica, suplica.

Nuvens negras, carregadas, sempre avançaram no meu sábado de praia.
No respiro, o descanso tem prazo.
Moto contínuo: a barraca fecha, a canga dobra, o matte seca, o polvilho apodrece.
 
 
No horizonte, um rasgo de céu azul, num tom especial.
Profundo. Maduro. Inigualável. De tão poderoso, colore qualquer dúvida, desloca a camada glacial.
 
 
Terral e força mental firmam a previsão. Volta o sol inclemente, que queima, entranha, enrijece.
 
 
A nuvem passou, a fresta apagou, a brecha fechou, a nesga sarou. Coagulou.
Um mergulho.
 
 
Segue a vida. Sem arrependimentos.
Ao menos pra mim.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Where´s the ground?

Pegadas na pedra fria no quarto do 201. Agora, já calçada, a descer os degraus de madeira barulhenta sigo no paralelepípedo da garagem. Lá estão meus pés sobre embreagem, freio. Acelero. Caio no subsolo de borracha, cimento, viajo os andares do elevador. Tapete. Mármore de empresários. Lama do subúrbio. Poça da Gávea. Asfalto sobre o metrô. Ginástica no alto do prédio. Banho sobre o suporte. O direito, o esquerdo, clamam por chão. O corpo clama por chão. Há tempos... Mas onde? Cadê a primeira camada, de onde colho a pura energia do centro da Terra?
Há quanto tempo não pisamos no chão de verdade... Se é que já tivemos esta experiência...
Sigo pra praia, mas, nem a areia é incólume, com buracos, estoques subterrâneos. Num mergulho solitário, afundo. Um toque rápido do dedão, insuficiente, sufocante. Avisto um gramado no Aterro, sinônimo de assoreamento. Sobreposição que afastou o mar. Ali, descalça, louca, me engano, me deleito. Me olhem sim, não importa...
Caminho na terra molhada, penso, sonho. Entranho a sola, sujo os dedos, a unha, o esmalte cintilante.
É tarde. Calço as meias, sintéticas, coreanas.
De volta ao solo duro, criado.
Malcriado.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

NÉCTAR

Minha vida é como as asas de um beija-flor. Movimentos acelerados que enganam a vista. Bate sem ver, voa sem sentir. Abri as pálpebras com força, ajustei o foco e, depois do turvarão, me debruço a entender o trajeto. Voo sem planilha. Reflexo tácito que desvia do inesperado. Tão rápido que não dá chance à surpresa. Até aqui, em viagens sem rota incomum, senti o gosto doce da independência. Sabor que agora amarga a língua.
Sou livre, sem gaiola, iluminado, ao mesmo tempo, tenho medo. Mas, guardo o temor sob as penas metálicas, sob o couro, no âmago.
Do contrário, a revoada egoísta me levaria, zombaria, engoliria. Sou pássaro maduro, herói da seleção natural.
Por que então questionar conquistas? Para que pedir, se posso fazer sozinho? Escolhas, alimento, ninho... Tudo meu. Tudo eu. Descubro que de nada adianta ter pólen em profusão. Só pra mim. Beija -flor que não divide, não tem pouso. Reflexões ainda em curso já trazem ventos mais frescos. Sim, minhas asas seguem rápidas. O radar é que apurou. Traço alvos desafiadores, tenho meta. Risco vertical. Flores rasteiras, rasas de raiz, inodoras, deixo para os pombos ciscarem. Busco agora as Margaridas polpudas que florescem no alto da sacada. Da bancada. Subo sem pudor, me mostro, me arrisco. Passeio em seus canteiros, invado seu arranjo, sem convite. Torço para que me prenda em seus galhos tortos e frondosos. Me roube a solidão, sem que eu implore. Requer presteza, paciência, até encontrar brecha. Talvez em breve, ou nunca, me canse de espiar seu jardim que, mesmo sem espinhos, espeta impetuosamente. No interim, me divirto com Lírios, Copos de leite e Jasmins.
Logo o faro me trai.
Volto a sua janela. Pairo no ar. Fito a doçura escondida entre as pétalas. Respiro de longe seu perfume natural.
À espera do NÉCTAR. Por ele, só por ele, reduzo o giro, aguardo.
Arremeto.