segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

TIRO

A correnteza levou uma amiga.
E mais centenas de pessoas.

Subi a Serra na quarta-feira, poucas horas depois da enxurrada.
Em Itaipava, o cenário da minha infância desfigurado. Montanhas, outrora verdes, derretidas em barro desgovernado.
Lama vermelha, violenta.
Nossa equipe percorreu a estrada do Vale do Cuiabá estarrecida.
Um paraíso arrebentado.
O Rio Santo Antonio, a vegetação, os postes, os carros... Fora do lugar. Retorcidos pela chuva.
E famílias entregues. Paradeiros construídos em décadas, destruídos em segundos.
Engolidos pela terra.
Submersos pela tristeza.

_ Estou com sede. _ disse a criança imunda.

Dei a garrafa de água que achei na bolsa.
Em goles vigorosos, empurrou o pavor goela abaixo.

_Onde está sua família._ perguntei.


_Não sei. Estou perdido_ disse o menino, agora órfão.

Uma senhora descalça, maltrapilha, me abraçou no silêncio das lágrimas.
O marido cavava com as mãos o terreno molhado:

_Aqui embaixo estão meus pais, meus filhos, minha casa. Preciso encontrá-los. Preciso enterrá-los de maneira digna. Esse não pode ser o túmulo deles.
Não pode.

Descrença no olhar do cocheiro diante dos cavalos de raça mortos na beira da estrada.

_Eu não acredito mais em Deus._ gritou ao céus.

Chegamos ao meio da estrada do Vale andando pelos destroços. Sofás, brinquedos, grades, portões de ferro bloqueavam o caminho.
Memórias amontoadas nos cantos.
Corpos eram retirados do que restou de uma casa.
Bombeiros identificavam as vítimas com calma. Um dos 14 mortos ali ainda estava sem nome.
Era uma mulher.
Algo inexplicável me fez aproximar.
A imagem mais forte que já vi.
O susto veio como tiro no peito.
A vista ficou turva. Embaçada pelo dantesco.
Era mesmo Daniela.
Mulher linda. Divertida. Brilhante.
Amiga de poucos e bons momentos.
A notícia mais difícil que já dei.

A correnteza que levou uma amiga,
E mais centenas de pessoas,
Levou também um pouco de mim.