sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Estupidez


Sou eu quem me governa.
Atravesso o asfalto liso.
Sem faixas para me guiar.
Longe de sinais luminosos que fream passos.
Egoísmo poderoso que arrefece automóveis, atropela os fracos.
A buzina é instrumento de tortura.
Nas frações de segundo do verde, propago o barulho vermelho. Cores da minha aquarela intolerante.

O carro sobre a calçada sai à reboque. Vou vê-lo de novo, eu sei.
Pago o habeas corpus. Estaciono de novo.
Rodas paralíticas, recém-nascidas, que enfrentem pistas aceleradas.

O toque estridente do telefone invade a cena do teatro.
Vida que não se desliga por outros personagens, que não eu.
E a garrafinha plástica, camuflada na entrada, largo no chão.
Estímulo à faxina do pós-espetáculo.

A areia da praia é túmulo dos canudinhos que lambi.
Daqui a cem anos, relíquias nas ondas negras do mar.
Feliz de quem achar.

Meus restos se misturam no gordo saco de lixo.
O que descartei, decomposto pelo tempo, jamais pela reciclagem.
Moscas varejeiras, insetos nocivos, garantem a eternidade.
Sou altruísta.

Não me interessa para onde vai o que expeli.
No fundo, torço para que esteja navegando nas águas da Lagoa.
Vai dejeto, faça os peixes boiarem podres.
Permeie a cidade com seu perfume.

Meus apertos líquidos se aliviam nos canteiros.
À luz do dia, brilham no tronco da amendoeira centenária do Leblon.

Me fascinam bueiros entupidos no temporal.
Guimbas dançam conforme a música alta que incomoda os vizinhos. Redemoinhos vigorosos da estupidez.
Retratos fiéis de mim.
De um Carnaval que não escoa.

Sou eu quem me governa.
Sou eu, um cidadão carioca.
Quero meu crachá, nêm.