terça-feira, 1 de novembro de 2011

O QUE SEI ATÉ AGORA

Sei de mim. Ah! Como sei.

Tenho medo de avião. De barata. De injeção na veia. De galinha.
Não sei trocar lâmpada. Dirijo bem, mas, não gosto de estacionar.
Faço um feijão gostoso.
Adoro amigos em casa.
Evito locais subterrâneos.
Sou louca por jasmim.
Aprecio um cangote perfumado. Sem exageros.
Um banho fervendo. Água de alfazema, camisola velha e travesseiro baixo.
Espuma do sabonete. Spray de chantily. Roupa de linho. Nó de lenço. Óculos escuros. Meia felpuda. Lareira. Blush rosado e rímel. Muito rímel.

Detesto o som incoveniente: Da moto barulhenta. Da mulher infeliz. De quem fala gritando.
Do vizinho vascaíno. Do alto- falante do ferro-velho que me acorda aos sábados.
Fujo dos grudentos. Dos carentes. Das cobranças.
Das maledicências.

Gosto de gente boa. Boa gente. Gente doida.
De excentricidades. De gratidão. De tiradas rápidas.
Do afago de estranhos. De bobagem.
De rir sem controle em horas impróprias.
Da memória seletiva. Que guarda o que é bom.
Em detalhes.

Vivo de saudade. Do que vivi. Do que ainda não vi.
E rio com histórias bem contadas.
Rio de mim. Sempre.
Celebro a descoberta de virtudes. O humor desmedido.
A amizade incondicional. Antiga ou nova.
O pêssego maduro. A cama bem feita. O nascer do sol.
O almoço com meu pai aos domingos.
A comida feita por minha mãe.
Uma taça de vinho tinto e Madeleine nos ouvidos.
Em casa. Sozinha.

Torço por todos. Por tudo. Pelo otimismo sem motivo.
Não peço nada a ninguém. Só às vezes.
Tenho mau humor de manhã. Fome à tarde.
Pés, irremediavelmente, gelados o dia todo.
Sinto remorso pela planta que esqueci de molhar.
Por ter abandonado, mais uma vez, a academia.
Por não ter abraçado minha avó no almoço.
Por não estar mais tempo com meus sobrinhos.
Por não ter dito para o cara o que sentia naquela noite.
E tenho inveja, claro. Todos temos.

Lido bem com críticas. Com os enganos da minha intuição. Com meus cabelos brancos, mas, detesto as olheiras.
Detesto, muitas vezes também, meu jeito inquieto. Minha correria.
A desatenção nata que esquece o celular na geladeira.

Sou de poucas coisas. Poucas marcas. Poucos sonhos.
Quero mais é boiar em Búzios. Mergulhar em Ipanema. Sambar na laje. Cantar no chuveiro.
Fazer boas coberturas jornalísticas.
E, quem sabe, ter filhos.

Estou em dúvida sobre o discurso que farei, daqui a pouco, no casamento da melhor amiga.
Não sei se um dia escreverei um livro, mas, devo plantar uma árvore esta semana.
Não sei se troco meu sofá.
Se vou ao show do Sting nas férias.
Muito menos se casarei com o aquele que deve ser o amor da minha vida.
Não sei dizer. Não sei de nada.

Só sei de mim.
Ah! Como sei...

Por hora, já é suficiente.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Incondicional

Joana, de onze anos veio de Roraima.
Francielle, de dezoito, do Amapá.
A família de Morgana era do Rio mesmo.
Mas veio toda.
Doze parentes.

Calçada da  Rua das Oficinas, Engenho de Dentro, ala Norte do Estádio João Havelange.
O endereço deles e de mais dezenas de pessoas durante cinco dias.
Um acampamento de obsessão.
O alvo de toda a energia despendida é um jovem, muito jovem, cantor em ascensão.

Você que lê este texto já sabe quem é.
Até meu pai conheceu, depois da passagem avassaladora de Bieber pelo Brasil.
E pelos jornais.

Sem banheiro, sem colchão, sem sombra.  Resistiram ali até a abertura dos portões.
E tinham forças para cantar quando apontava o microfone.
Correr quando passava um helicóptero.
Chorar quando chegava uma van.

Em três dias de cobertura, aprendi as músicas, decorei o nome do cão, descobri a comida preferida e até a cor predileta do cantor. Mais do que isso:

Vi do que é capaz um fenômeno das massas. 

Na minha adolescência, gostava do A-HA e, principalmente, do vocalista do grupo.
Tinha um pôster na porta do quarto. Os discos, como trofeus, na mesa de cabeceira.
As letras na ponta da língua. Só.
Não era como as meninas da porta do Engenhão. Não era mesmo.

Elas são mais. Querem mais. Sonham mais.
E têm o apoio dos pais.
Ou dos maridos.

Encontrei um senhor sentado na cadeirinha de praia no meio da fila. Exausto.
Na TV, ao vivo, me disse que guardava o lugar para a esposa.
Maria Vanúbia o convencera a ficar ao sol, ao relento, para ver o menino de perto. E ele foi.
Estava bêbado de Bieber.
Só com muita cachaça mesmo.

Morgana gastou as economias para levar as duas filhas.
Torrou os níqueis e as forças.
Na hora do show, dormiu encostada na viga do palco.
As filhas mal ouviram as músicas. Só gritaram.
E saíram felizes da catarse.

Eu mesma fui seguida, durante horas, por três meninas que cismaram com uma ideia maluca.
O trio acreditava que eu iria estar com o astro. Que fora ali para entrevistá-lo.

_ Se você entrar no Engenhão, não entrará sozinha. Nós vamos com você. Não tem jeito._ ameaçaram.

Desiludidas, acabaram tirando uma foto comigo mesmo.

Do alto de meu pragmatismo, invejo esse olhar incondicional pelo desconhecido.
Invejo a dedicação desaforada pelo inalcansável.
A loucura juvenil que dispara corações.

Essa força estranha só tenho mesmo é pela vida.
E, mesmo assim, por vezes, com certa preguiça.

_E Bieber? Cantou mesmo?_ perguntei na saída.

_ Não importa!_ disseram as fãs, em couro.

Entendi, meninas. Entendi.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Salgueiro

Tiros anunciavam o alvorecer no Salgueiro.
O Morro da Tijuca, do samba, do bamba.. Em guerra.

Era o segundo dia de 2001.

Traficantes rivais disputavam território.
Famílias e repórteres em madrugada encurralada.
Barracos e bares fechados.
Então repórter da Rádio CBN, me encolhi na soleira de um sobrado.
Balas triscavam a fuça, como varejeiras na orelha do boi.

Três horas ao som dos disparos.

Os fuzis se calam.
Moradores também.

Saio da trincheira.
Desço a ladeira apressada.
Tão íngreme quanto a parede, crivada de balas.
Zumbido constante no ouvido.
Trauma eterno na memória.
E mais uma reportagem violenta para narrar.

Passei aquela semana falando sobre o caso.
Comigo mesma.
Decidi não contar em casa o que vivi.
Eles não entenderiam.

Também não me atrevi a subir o Salgueiro novamente.
Na saída, fiz juramento no pé do Morro.

No último sábado, quebrei a promessa.
Dez anos depois.

A reportagem era sobre uma festa. Um ano de ocupação policial.
Na subida, a cada curva, a pincelada de um retrato.
A imagem de mim mesma refeita na lembrança.
Enxerguei a iniciante assustada, à perfeição.
Em cada esquina.
Até o cheiro de pólvora ventou do passado.

Encontrei a favela receptiva.
Com bandeirinhas e crianças empurrando ladeira acima.
Com Zico em campo na pelada com os moleques.

A menininha no banho de mangueira no quintal.
O aroma do feijão no fogo.
Pontos de observação do tráfico eram lajes.
Apenas lajes.
E roupas penduradas com esmero por Dona Áurea, quarenta anos de Salgueiro.

Debruçada no tanque, profetizou:

_Nasci e vou morrer aqui. Não largo o Morro por nada.

E desta vez, o som do Salgueiro foi diferente.
Foi canção de Herivelto:

"Tem alvorada, Tem passarada
Ao alvorecer,
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer
Alvorada lá no morro que beleza"




 

 
Volto já, Salgueiro. Volto já.  

terça-feira, 30 de agosto de 2011

DE REPENTE


É lindo o futuro que chega.
De repente.

Rápido como chama da vela de aniversário.
Um sopro que sela o tempo aos aplausos.

E eu, bato palmas para a vida.

Que cresce no ventre de Antonia.
Que engatinha na sala de Roberta.
Que desliza no calçadão para Olivia.
Dança no colo de Ana Luiza.
De repente.

Minha cidade prepara o amanhã.
Rio caótico que se vai aos poucos.
Em contagem regressiva.

Bendito o futuro que chega.
De repente.

Minha amiga Mariana planeja o para sempre.
A noiva enxerga adiante.
Em contagem regressiva.

Promissor futuro que chega.
De repente.

Tolice imaginar o que virá.
Bom mesmo é ver chegar.
De perto.

Meu amanhã é florido.
Como o bougainville carregado da varanda.
Não conto mais os dias.
Vejo vindo.

É lindo o futuro que chega.
De repente.

sábado, 27 de agosto de 2011

ENCONTROS


Ser repórter é celebrar encontros.
Pautas podem ser presentes.
Divinos.
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Eram representantes do tradicional folclore de Campina Grande.
Saias de chita colorida, rendas e flores. Ternos engomados.
Dança junina que gira a alma.
Casais se entrelaçam, formam um desenho. Uma explosão. Um quadro abstrato.
Entrevistei o grupo outro dia.

Com a câmera já desligada, aceitei convite para dançar.
Fui para a roda com os mestres.
Dois minutos de delírio. Meu e da equipe.
---

No parque infantil, na Baixada Fluminense, engenheiros vistoriavam brinquedos. Atrações que tantas vezes invadiram meus sonhos.
Encheram minhas tardes.

Reportagem entregue. No ar.
Sobrou tempo. Que tal um passeio nostálgico no carrinho bate-bate?
Lá fomos nós. Crianças de blazer. Cheias de conta para pagar.
---

Virei criança de novo ao visitar o Projeto Reação na Rocinha.
No tatame, meninos e meninas de quimono aprendendo a lutar.
Cinco deles, não queriam fazer o aquecimento.

_Só se a tia for...

A "tia", em questão, era eu.

Sapatos de salto no canto. Corri com os pequenos.
Aqueci meu coração.
---

Frente a frente com Alcione.
Aos seis anos, era desinibida o bastante para imitar a marrom.
A versão mirim de "Garoto Maroto" era aplaudida na sala.
Como não contar tal ousadia para a própria?

Depois de gravar, revelou-se a fã de outrora.
Cantamos o refrão juntas. Homenagem da diva à infância desafinada.
---

Na Cidade de Deus, fui eu quem se surpreendeu com um imitador.
João Marcio, de onze anos, andava pelas ruas descalço com a pipa em punho.
Se aproximou do carro e perguntou:

_Mariana Gross tá aí?

Quando me viu, arregalou os olhos.
Sim, aquele menino abusado me imitava. E bem.
Uma surpresa rara.

Fim da matéria. Nosso carro se afasta no caminho de terra.
E na última curva, pelo vidro de trás, vejo o menino sorrindo.
---

Ser repórter é celebrar encontros.
Pautas podem ser presentes.
Divinos.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

GIZ


Outro dia descobri que te amei.

Seguia na mesma rotina.
No rádio, a canção de Jobim.
Um rosto veio à retina.
Olhar que não coube em mim.

Repleta de ti, reli seu jeito.
Carta aberta de memórias.
Escrita a giz em meu peito.
Talhada em belas histórias.

Escavei sentimento antigo.
Que não sabia da existência.
Amor que ficou de castigo.
Lacrado em penitência.

Marretei sensação encoberta.
Enterrada sob denso concreto.
Emoção tardia se liberta.
De encontro, outrora, secreto.

Amor verdadeiro, agora sei.
Atrasei-me por assumir.
Mais puro que prata de lei.
Por hora vou admitir,

Outro dia,
descobri que te amei.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Andorinhas


Sempre gostei de dar Bom Dia.
Nem meu habitual mal-humor matinal, frea o ímpeto de cumprimentar estranhos.
Quando criança, festejava até passarinhos nas manhãs de Búzios.

_ Bom dia, andorinhas!_ dizia.

De uns meses pra cá, meu bom dia, ganhou amplidão.
Agora é via satélite.

Quem diria...

Por trás do vidro, no plasma, em lâmpadas de LED, pela internet.
Todos os dias, acordo muita gente com as tais palavrinhas.
Sei lá que cômodo, que momento, estou invadindo.
Só imagino situações.
Em algumas delas, talvez, até sirva de estímulo:

_Essa moça já está lá no estúdio, toda arrumada, e eu aqui de pijama, debaixo das cobertas.

Há também os que fazem do jornal, um despertador:

_ Já ouço a voz daquela magrinha. O Bom Dia Rio começou? Tenho que entrar no banho..

Esta semana, uma delegada disse que só escolhe a roupa, depois de ouvir o que tenho a dizer sobre a previsão do tempo.

Baita intimidade.
É preciso caprichar.

Naquela hora da manhã, já falando pelos cotovelos, tinha tudo para me tornar a "incoveniente da madruga".
Miro, então, em exemplos bem sucedidos.

Quer um "Boa Noite" mais doce que o da Fatima Bernardes?
Ou um "Até domingo que vem" tão simpático como o do Zeca?
E o que dizer do "Olá" de Renata Capucci?

Atuais medalhões da apresentação, eles conquistaram a naturalidade, do primeiro ao último alô, com o telespectador.
Não é fácil.

Eu sempre respondi ao Cid Moreira em sua tradicional despedida no Jornal Nacional. Era como um tio grisalho alertando a estudante de que já era hora de dormir.

Qual seria então o segredo de se comunicar bem com uma lente?

Admito que, dois anos atrás, prestes a fazer minha estreia no estúdio, cheguei a treinar diante do espelho. Foram mais de quarenta repetições.
Nada feito.

Hoje, observo o amanhecer, peso o humor nosso de cada dia e disparo o cumprimento leve.
Como o de uma criança fazendo arte no jardim da casa de praia.

Bom dia, andorinhas.
É hora de voar...

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Ônibus 174


Era uma professora de artesanato.
Voltava de mais um dia de aula na Favela da Rocinha.
Tinha minha idade.

Geísa pegou o ônibus naquele dia dos namorados de 2000.
O percurso foi interrompido a poucos metros da minha casa.
Na época, ainda morava com minha mãe.

Foi naquela esquina que nossas vidas se cruzaram.
Mas só uma seguiu em frente.

Eu, recém-formada, já repórter da Rádio CBN, ia para uma reportagem sobre aumento do preço do material escolar.
Escolhi a papelaria do português perto de casa.
Meu percurso também foi interrompido.

Havia um assalto com reféns em andamento no Jardim Botânico.

A área ainda não estava cercada.
Me aproximei do ônibus da linha 174.
Surge a professora na janela.

Um olhar inesquecível.
Seco, arregalado.

_Sai daqui repórter. Avisa aí que eu vou matar todo mundo._ disse Sandro, o sequestrador.

Seguiu-se uma cobertura de seis horas.
Policiais bloqueando ruas, moradores fechando janelas, atiradores posicionados e um país unido pela agonia.

Geísa foi o escudo mais usado por Sandro.
Quando o bandido a soltava, ela olhava para mim.
Um rosto sem esperança.
Parecia saber que, naquele dia, não voltaria mais para casa.

_Eu vou morrer. Sei que vou._ repetia

Em um momento, gritei de volta:

_Fique calma! Já vai acabar!

Fui repreendida pelos policiais que pediram para que eu não respondesse.
Meus gritos poderiam atrapalhar ainda mais as negociações.

A audiência na rádio bateu recordes.
Até a tradicional "Hora do Brasil" foi suspensa.

Minha avó me viu na TV:

_Minha neta, afaste-se desse ônibus. Tá muito perigoso isso. Pode sobrar para você.

Sentia cãibra nas mãos. Foram intermináveis entradas ao vivo ao celular também para a Rádio Globo.
Uma narração dificílima. Descritiva. Tensa.
Prova de fogo para uma iniciante.
Tinha vontade de chorar.
De fechar os olhos quando Sandro ameaçava "explodir a cabeça" dos reféns.
Por várias vezes, entrei no ar com a voz embargada.

_Mariana, segura o choro, porra. Não é hora para isso._ disse meu então chefe, Luciano Garrido, ao telefone.

Uma bronca providencial. Fundamental, eu diria.

Já era noite quando Sandro decidiu sair com Geísa do ônibus.
Tiros. A professora sai carregada por PMs, ferida.
Sandro é posto na mala da patrulha, ainda vivo.
Morreu sufocado pelos policiais ali mesmo.

Segui a ambulância que levava a professora até o Hospital Miguel Couto.
Foi minha última notícia do dia:

_Falamos, mais uma vez, ao vivo aqui do Hospital. Segundo nota divulgada agora pela equipe médica, Geísa não resistiu. Morreu há pouco.

Foi baleada no pescoço por um soldado do BOPE.
Soubemos depois que estava grávida de dois meses.

Era uma professora de artesanato.
Voltava de mais um dia de aula na Favela da Rocinha.
Tinha minha idade.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Pêndulo


Olha em frente.
A longa estrada reflete no vidro do carro.
Chove.
O limpador seca o parabrisas.
Pêndulo que varre as gotas.

Vai e vem. Como o nosso amor.

Quando vai, é trovoada de horizonte turvo.
Resta o acostamento de mágoas.
O percurso fica curto. Escorregadio.
E a motorista frea.

Onde está o navegador?

Quando vem, é chão de pétala.
Vento oxigena motores.
Rodas flutuam no asfalto. Dançam.
E a motorista acelera.

Meu norte chegou.

Agora o pêndulo está parado.
O vidro cristalino.
A vista, cheia de sementes.

É verão em meu caminho.

Vamos em frente, Commander.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Bom Dia Rio


Na hora em que o sono pesa.
A cama te abraça. O silêncio embala.
Um alerta em transe interrompe o transe.
São quatro e quinze da manhã.
Levanto enrolada no edredom. Nossa separação tem que ser paulatina.
Saio pelas ruas escuras e vazias.
As primeiras palavras da madrugada fria são "bom dia" para o mendigo na calçada da padaria.

Maquiagem, secador, camisa passada e certo mau-humor.
Doze andares de elevador.
No espelho, as olheiras fartamente disfarçadas.

Enfim o encontro com o estúdio.
Um cenário real no topo do prédio no Jardim Botânico.
Revestido de vidro. Cercado de belezas naturais.
Da vidraça lateral, em primeiro plano, o Corcovado e o Cristo Redentor de banda.

Do vidro central, o brilho da Lagoa Rodrigo de Freitas e montanhas.
O hipódromo da Gávea e tordilhos galopando. À esquerda, o Morro Dois Irmãos escancarado e farto trecho da Floresta da Tijuca.

É entre cartões-postais que celebro meu alvorecer.
A alegria vem mesmo com o Pão de Açúcar.
Por trás dele agora vejo o sol surgir todos os dias.
Um fenômeno ligeiro. Não pode piscar.
O círculo rosado vai rompendo a neblina.
Colorindo as nuvens.
Injetando ânimo à minha prostração.

Sempre gostei dos começos.

Os primeiros raios iluminam meu rosto.
Doam energia.

Bom Dia Rio.
É bom acordar com você.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Heróis ocultos


Fim de tarde. Setembro de 2001.
Cheguei à Linha vermelha as pressas.
Um incêndio embaixo do viaduto da via expressa lambia casas de papelão.
Uma comunidade miserável erguida sob concreto e asfalto.
Famílias corriam para se salvar.
Porcos encoleirados num canto escuro, aos gritos. Ambiente insalubre.
O homem desesperado observa os destroços em chamas e grita pela filha.
Um bombeiro invade o fogo, sem titubear.
Resgata a criança. O que restou dela.
Era um pequeno corpo desfigurado nos braços de um bombeiro inconsolável.

Em maio de 2004, o esgoto tomou conta da principal Avenida da Lagoa, na zona sul. Jorrava de um grande duto rompido. Invadiu carros, parou a região. Chegam técnicos do estado e desligam as bombas. A medida não surte efeito. A cachoeira fétida ainda borbulhava com força.
Um deles, então, põe máscara e roupa especial.
Mergulha no coco, sem titubear.
Contém o vazamento e sai do buraco sorrindo.

No ano seguinte, uma adolescente é encontrada ferida e traumatizada numa calçada em Del Castilho. O pai bêbado é quem batia e violentava a jovem.
Marina, de 16 anos, parecia um bicho acuado na sarjeta. Agredia quem tentasse lhe oferecer ajuda. Surge uma psicóloga que, no primeiro contato, levou uma bofetada no rosto. Depois, teve uma mecha de cabelo arrancada pela jovem ferida. A especialista não desistiu.
Depois de mais de uma hora ajoelhada ao lado de Marina, ganhou um abraço da menina aos prantos.
E a levantou do chão.

Nos primeiros raios de sol do primeiro dia de 2006, minha equipe estava a postos em Copacabana. A festa do Reveillon tinha acabado. A pista da orla coberta de latas e garrafas. Quilômetros de sujeira no horizonte da princesinha do mar.
Surgem homens de laranja e suas vassouras.

Pergunto a um deles:

_ Por onde vocês pretendem começar?

_ Nós não pensamos em começar. Temos é que acabar a limpeza. E logo.

_Feliz Ano Novo pro senhor._ disse eu.

_ Para você também. Boa reportagem.


Homenagem aos personagens cariocas que, assim como nós jornalistas, são sinônimo de resiliência.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

A Fada do Mercadão


Mulheres suspirando. Adolescentes sonhando acordadas.
E o ar do planeta carregado de amor.
Paramos em frente à TV, naquela sexta-feira de abril, não para ver os desdobramentos da guerra ou mais uma tragédia natural.
Queríamos o beijo, não a bomba.

Um casamento real com pinceladas de "Era uma vez...".
Todos os personagens ali:
A princesa plebeia, o noivo fardado, a madrasta má e até as irmãs, ou primas, mocreias.
Não há imaginação curta que não estique.

_Eu também quero me casar com um príncipe_ diziam moças cariocas diante das imagens.

Aquele dia, no Mercadão de Madureira, eu não fui princesa.
Fui fada. Fada madrinha.

Estava em um dos mais tradicionais mercados populares do Rio com uma missão: mostrar a busca por cópias de acessórios usados pela princesa Kate.
O anel de noivado, que havia sido de Diana e agora brilhava no anelar de Lady Middleton, era artigo quase esgotado na versão made in China.

Minutos antes da entrada ao vivo no RJTV, procurei pelos corredores do centro comercial uma jovem para entrevistar.
Queria que uma das tantas cariocas encantadas com o casório, declarasse seus anseios no telejornal.

Envergonhadas, elas não se dispuseram a dar entrevista.

De repente, surge uma mulher de uns quarenta anos.
Com tiara de tule na cabeça e bom humor, se apresentou como candidata a princesa. Elisa trabalha como vendedora de plantas em um quiosque do Mercado.
Achei inusitado.

Primeiro fiz perguntas para a gerente da loja de bijuterias.
O estabelecimento estava faturando alto com o casamento real. Vendera, em horas, dezenas de anéis de "safira" por módicos quatro reais.

Depois, apontei o microfone para Elisa:

_ Você já garantiu seu acessório "real", não é isso? _ indaguei ao vivo.

_ Sim, Mariana. Estou pronta pra ser princesa.

_ Só falta o princípe? _ remendei.

_ Pois é... Alô, príncipe Harry! Eu estou aqui! _ disse ela, olhando para a câmera sem pudor.

_Quem sabe o irmão do príncipe William não te dá uma chance? _ completou Ana Paula Araújo, do estúdio.

Rimos demais.
Quando nossa equipe já estava indo embora, Elisa se aproximou com um imenso vaso nos braços. Era uma orquídea roxa belíssima.

A vendedora, com sorriso iluminado, me deu a flor em agradecimento:

_ Sou apaixonada por um cara há tempos. Ele nunca me levou a sério.
Depois que me viu na televisão, agora a pouco, ligou para mim cheio de declarações bonitas. Estou até emocionada. Obrigada, minha fada.

Gerson queria ser o príncipe de Elisa.

Que sejam felizes para sempre...

Sim Salabim.

domingo, 17 de abril de 2011

JN


Oito em ponto e a vinheta inconfundível ecoava entre os prédios.
Boa noite, Cid Moreira.
Era o único momento em que meu pai ignorava solenemente as filhas.

O dólar sobe, a bolsa cai, o ator morre, o caminhão tomba e o tempo fecha.

Em uma hora, Carlos Fernando e outros milhões de brasileiros se interavam do dia. Das últimas vinte e quatro horas de acontecimentos no Brasil e no Mundo.
Audiência total.

A deferência concedida ao telejornal lá em casa, marcou minha infância.

Na primeira vez que entrei na emissora, ainda em teste para repórter, descobri que a redação era o cenário do Jornal Nacional. Naquele dia, avisei ao meu pai por telefone que estava sentada em uma das mesas ao fundo dos apresentadores. Virei assumidamente uma "papagaia de pirata", tamanho o frisson.

Na semana em que fui contratada, cruzei com Fatima Bernardes no corredor.
Ela sorriu para a estranha.

Passei a aparecer todos os dias na TV em incansáveis reportagens para o RJTV. Como faço até hoje. Mesmo assim, vez por outra, ouvia perguntas da família, ainda insatisfeita:

_Quando vamos te ver no JN?

É o mesma situação do casal que acabou de sair da igreja e já é bombardeado com a cobrança:

_Quando vêm os filhos?

Meu filho demorou para nascer em rede nacional.
Precisava amadurecer. Mostrar serviço.

Inúmeras vezes, entrevistas feitas por mim para o jornal local foram usadas em rede. Ficava orgulhosa só de ver minha mãozinha segurando o microfone nas matérias da Beatriz Thielmann.

Minha hora tardou, mas, chegou. De surpresa.
Seguia para registrar uma árvore que caíra em cima de uma escola na Barra da Tijuca. Quando nossa equipe passava pelo Túnel Zuzu Angel, começou o tiroteio em São Conrado. Ficamos presos na galeria, no escuro.
Motoristas em pânico e nós gravando. Tudo.

Cheguei com o material exclusivo na emissora.
Não assinei a reportagem naquele dia. Tinha pouco tempo de casa. Apareci apenas narrando o drama dentro da reportagem do colega.

Um feto em formação...

Anos depois, apurando as causas de um tiro que atingiu uma menina na Avenida Brasil, recebi o telefonema:

_Mariana, o Jornal Nacional também vai querer uma reportagem sobre esse caso_ disse Carlos Jardim, chefe de redação dos jornais de rede.

_ Tudo bem. Quem é o repórter que vem? _ perguntei.

_ Não vai ninguém. Você vai fechar para o JN.

Achei que era brincadeira.
Decidi então não espalhar a notícia. Só liguei para um amigo de confiança em busca de apoio. Não quis criar expectativa em casa.
Vai que desistem da matéria?

Naquela terça-feira de maio de 2010, fiz minha estréia no Jornal mais famoso do país. Enquanto assistia à matéria, lembrei da menininha que olhava de soslaio as manchetes de Chapelin. Lembrei da estudante espevitada. Da estagiária atrapalhada.

Embalada pelo sonho de criança, até hoje sinto certo arrepio quando participo do JN. Pode parecer bobagem para uma repórter já com alguma experiência... Mas, não é não.

Meu filho nasceu.

Sabe de uma coisa?
Quero uma prole.

terça-feira, 12 de abril de 2011

REALENGO


Era preciso reportar.
Entender e fazer entender.
Mas como?

Eles não vinham da favela em guerra.
Não vinham da laje da pipa.
Muito menos de uma festa regada.

Chegavam feridos do colégio.
Vinham de uma aula de horror.

O jovem uniformizado retirado da ambulância.
Mãos trêmulas. Olhos arregalados.
Em sangue. Em choque.
O tubo lhe dava o ar.

A menina chega perfurada pelo dantesco.
Cabeça aberta à bala. Futuro interrompido a tiro.
Morreu na porta do hospital.

Mais alunos iam chegando ao som incessante das sirenes.
Mais mortes eram confirmadas ao som de gritos de pavor na emergência.

Médicos na rua em prantos.
E nós, repórteres, engolindo em seco.

Seu Jair entrou no carro amparado.
Levava na mão a fotografia de uma jovem linda.

_Essa é minha sobrinha. Esse sorriso foi embora.

Uma senhora ofegante chega perto:

_Deixei meu neto na escola. Ele não está mais lá.
Veio pra cá?

_ Acredito que sim, minha senhora.

Ela tomba em silêncio na calçada.
E eu, caio junto. De tristeza.

Era preciso reportar.
Entender e fazer entender.
Mas como?

quinta-feira, 31 de março de 2011

ABRIL

 Olivia e eu aos 6 anos
Na véspera de completar 6 anos, fui derrotada pela ansiedade.
Fiz xixi na cama sonhando. Estávamos em Angra dos Reis naquela Páscoa.
Acordei a mamãe envergonhada. Ela tratou de recolher o lençol, ainda de madrugada.
Saímos num passeio de barco. Na volta, lá estava o colchão manchado de urina tomando sol na entrada. Não teve jeito. Virei chacota da turminha.
Nem bolo, quis comer.

Aos 7, comemorei a data na festinha de uma amiga. O mágico me convocou para a apresentação. Fiquei dentro de um caixote por alguns minutos.
O "senhor dos sortilégios" fazia suas firulas.
Eu, experimentava a claustrofobia.
Estraguei o truque aos prantos. Uma cena hilária.

No aniversário de 9 anos, teve discoteca na sala de casa.
Mamãe tirou todos os móveis. Arranjou um cercado de madeira que delimitava a pista.
Usei bota de borracha branca com franjas da Melissa e minissaia de camurça azul.
Modelito aberração teen da época. Abri a série do Karaoquê interminável, sem medo de ser feliz.
No microfone, um desafinado "Diz pra eu ficar muda, faz cara de mistério..." do Kid Abelha.
Aniversariante pode tudo.

Aos 13, ganhei festa surpresa no Gattopardo. Pizzaria point da cidade.
Chorei e tudo com a surpresa. Lembro que meu pai se incomodou com "Bichos escrotos" aos berros no salão.
Tinha palavrão na letra dos Titãs...
No dia seguinte, desfilei no colégio a mochila nova da Company.
Objeto de desejo de toda gatinha carioca.

Não quis festa tradicional aos 15 anos. Preferi uma bagunça com amiga ainda mais animada que eu.
O pai da Maria morava numa casa enorme no Joá. Quase botamos a mansão abaixo.
Perdemos a lista de convidados e o controle. De repente, mais de trezentas pessoas sacudiam no deque de madeira. E, acreditem: o DJ mais famoso da época era Indio da Costa. Ele mesmo.
O vice de Serra nas últimas eleições. Ficamos desacreditadas pela família depois do estrago.
Que foi divertido, foi.

No apartamento da mamãe, foram várias reuniões nos aniversários seguintes.
Sempre com duas cópias da lista seleta e segurança na porta.
Banheiros entupiram, copos quebraram, sofás mancharam.

_Sem conserto. _disse a faxineira, chocada no fim de um dos agitos.

Casais, que ainda existem, se formaram sob o teto daquele apê.
Amor verdadeiro vale mais que a "perda total" dos tapetes.

Depois de mais de 30 comemorações, me pergunto:
Se não soubesse quantos anos tenho, quantos anos eu me daria?

Talvez 6, pela ansiedade que, vez por outra, me invade.
Talvez 7, pela claustrofobia que, vez por outra, me aflige.
Também pode ser 15, pela ousadia adolescente que só aumenta,
Ou até 50, pelas responsabilidades, que vez por outra, assumo.

Não importa.

Depois de três décadas, ficamos experientes em datas festivas.
Aniversário ganha sabor diferente.
Sabor ainda mais gostoso.

Vamos dançar até de manhã?

quinta-feira, 10 de março de 2011

A Felicidade


Sempre flertei com a Marquês de Sapucaí.
Em dia de desfile, minha mãe fazia vista grossa para a hora de dormir.
E as três irmãs pirralhas viravam juradas diante da TV.
Até o sono vencer.

A adolescência trouxe autorização para desfilar.
Os olhos saíram da tela para enxergar o colorido real.
Foram várias escolas, fantasias elaboradas e diversão com a amiga Olivia.

Já repórter, a festa mudou.
Tinha crachá para invadir qualquer canto da passarela. Um sonho antigo.
Faltava era a autonomia para sambar. Guardava na goela minhas impressões.
O Carnaval virou serviço. Pesado.
Foram doze anos virando noites na maratona da Sapucaí.

Chegou o ano 13 da cobertura. E a alegria voltou. Surpreendentemente.

Na escala da emissora, surgiu meu nome nas arquibancadas populares.
A missão era passar a noite fitando, não as atrações, mas as reações.
Cheguei ao Setor UM, o mais democrático do Sambódromo.
Sentei entre estranhos e voltei a ser expectadora.
Num ângulo genuíno. De quem viu o Carnaval nascer nos Morros cariocas.
De quem o ninou nas vielas.
Estavam ali os personagens da canção " A Felicidade" de Tom e Vinicius.

Gente que trabalha o ano inteiro por um momento de sonho. Para tudo se acabar na quarta-feira...

Dona Ediviges, 82 anos, vestia fantasia de melindrosa na arquibancada.
Levou almôndegas de carne preparadas com esmero no dia anterior.
Conhecia todos os componentes da comissão de frente da Grande Rio pelo nome.
Todos seus "sobrinhos lá da favela".
 _ Canso de fazer angu pra eles. Precisa sustância pra aguentar o tranco, né?

Quando a escola passou, desceu uma lágrima gorda pelo rosto da melindrosa.

Em outro degrau, conheci Dona Aidir.
A primeira Rainha de bateria da União da Ilha.
Ainda com ziriguidum e postura real. Sambamos juntas ao vivo.

As amigas de Irajá, ensopadas pela chuva, batiam o queixo tanto quanto o batuque do tamborim.
E queriam mais. No show da bateria, formou-se uma nuvem de respingos alegres.
Era a roupa e a peruca das moças secando no balanço do requebrado.

Seu Jonas, um senhor mulato de bigode farto, criticava a "paradinha" da Mangueira. Ele pode.
Foi ritmista e amigo de Cartola. Enquanto isso, as netas sambavam "miudinho" no que restou do concreto lotado.

De repente, a marcação se cala. A alegria vira ilusão. O sol nasce.
_Hora de pegar a condução, minha filha. Até ano que vem._ disse Dona Ediviges.

Tristeza não tem fim, felicidade sim.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Olho Turco

O Carnaval começa bem mais cedo para os repórteres.
Meses antes da festa, lá estamos nós rondando os barracões.
Nessas andanças, aprecio o trabalho de ferreiros e aderecistas.
Acompanho as alegorias ganhando forma. Fantasias brotando das máquinas de costura.
Aprendi a gostar de todas as escolas e suas peculiaridades.
Minha torcida é sempre pela surpresa. Venha ela de onde for...
Em dezembro de 2003, em visita à Unidos da Tijuca, os carros alegóricos me impressionaram.
Eram apenas armações de ferro. Cruas. Confesso que saí preocupada. Na mesma tarde, entrevistei o autor da obra. Um homem forte de camiseta justa e sorriso largo.
Era Paulo Barros e seus mistérios. Não quis me explicar como preencheria aquelas estruturas brutas e vazias. Só descobri no dia do desfile.
O carro era feito de gente. Bailarinos pintados de azul que se moviam como marola brilhante. Toda a gente que viu, aplaudiu de pé.
Pouco tempo depois, fiquei amiga de Paulo. Uma aproximação inexplicável. Espontânea.
Gosto de figuras criativas, ousadas. E acho que ele também. Daí por diante, entrei para um grupo seleto. Cada vez que vou ao barracão, tenho acesso aos desenhos secretos do carnavalesco, na salinha refrigerada no segundo andar. Ouço as ideias, bem antes de saírem do papel.
Enquanto ele conta os segredos, os olhos brilham.
Meu compromisso é não divulgar nada nas reportagens.
Missão cumprida a duras penas. A duras plumas...
Vez ou outra, ele não resiste. Libera a divulgação de algum detalhe para acalmar minha angústia jornalística.

Chega 2005 e lá vem Paulo com suas loucuras inovadoras. Naquele ano, o carnavalesco estava mais ansioso. A imprensa apontava a Tijuca como favorita ao título. Havia um clima de olho gordo no ar da azul e amarela da zona norte. Em um dos nossos encontros, ele notou que eu usava, pendurado em meu cordão, um pingente azul. Um pequeno olho turco. Presente da Tia Tanit, que por acaso é outra apaixonada pelo Carnaval. A bolinha, segundo conta a lenda, é blindagem contra mal olhado. Nunca fui das mais crentes, mas, na dúvida, decidi usar. Prometi dar um olho turco a ele antes do desfile. O ritmo de trabalho não permitiu um novo encontro nos dias seguintes.

Chegou o Carnaval. Na correria da concentração, procurei o carnavalesco e nada.
Poucos minutos antes de a escola entrar, cumpri minha promessa.
Num encontro rápido, tirei do bolso, não um olho turco, mas um medalhão turco de murano.
Achei que o amigo precisaria de uma blindagem maior. Para minha surpresa, Paulo apareceu na passarela com a peça amarrada ao pescoço. Jornalistas curiosos perguntavam se era uma proteção extra.
Senti certa responsabilidade. Imagina se algo desse errado?
A escola passou bela, para meu alívio. Arrancou até lágrimas da arquibancada.
Já na dispersão, Paulo surgiu exausto e sem o medalhão:
 _A medalha estava bem amarrada. De repente, o cordão de couro se rompeu e ela caiu no chão. Se partiu em mil pedaços._ contou ele, chocado.

Naquele ano, mesmo com inovações e aplausos, a escola ficou, mais uma vez, em segundo lugar.
O olho turco talvez não tenha aguentado tantas energias.
Paulo agora esconde seus amuletos. Guarda no peito sua confiança.

E eu, sigo de olho nos encantos do Carnaval.
Olho que não é gordo, nem magro. É vidrado.
Mas, não quebra. De jeito nenhum.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Gratidão

O anel é da minha mãe.
Mulher com gosto invejável para jóias.
O fascínio foi herdado de minha avó. Embaixatriz que percorreu boa parte do mundo e, mesmo sem muita verba, juntou uma pequena coleção. Peças simples que guardam memórias dos países nos quais viveu ao lado de meu avô.
De tanto que surrupiei o anel da mamãe, ela se viu obrigada a ceder.
O adorno caiu como luva em meu dedo indicador.
Uso desde os dezoito anos. Uma estranha identificação sanguínea.
É feito de prata com fina camada de ouro branco.
Uma vez, amassou na lateral depois de um esbarrão na mesa.
Ficou ainda mais charmoso.

Nos arquivos de minhas primeiras matérias, o rosto é de jovem estagiária assustada e o anel já aparece lá, reluzente, na mão esquerda.

Em uma reportagem sobre gripe, nossa equipe pretendia ensinar como lavar as mãos corretamente para evitar o contágio.
Um ônibus-escola da Secretaria de Saúde do Estado recebia os moradores em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Na lateral, pias móveis com água corrente eram a sala de aula.
Na hora do telejornal, coloquei um microfone na lapela da camisa para ficar com as mãos livres.

Ao lado do agente de saúde, lavei as mãos ao vivo.
Ele me sugeriu que tirasse o anel para higienizar bem o cantinho entre os dedos.

Fui embora. O anel ficou, esquecido na lateral da pia.
Só lembrei quilômetros depois, já em casa.

Liguei desesperada para assessores da Secretaria.
Nem sinal.

Uma semana depois, sem esperanças, recebo um telefonema pelo celular.
Um senhor de voz calma e gentil:

 _ Mariana Gross? Aqui é José. Foi você que perdeu um anel?

José era o motorista do ônibus da Secretaria. Achou o anel no chão embaixo da roda dianteira do veículo:

_Vi porque o sol fez o anel brilhar. Comentei hoje com a moça da Secretaria e ela disse que podia ser o seu._

 Do outro lado da linha, o coração bateu forte. Pela descrição, era mesmo meu amuleto da sorte.

Um motoboy amigo foi no mesmo dia, a meu pedido, até a casa de José, em Duque de Caxias.

O motorista não me pediu recompensa. Mesmo assim, mandei um envelope com quinhentos reais e um cartão de agradecimento.
Na volta do motoboy, lá estava meu anel, cuidadosamente enrolado em papel de seda dentro de um saquinho plástico.
Voltou para meu dedo de imediato.

O envelope também voltou, com um bilhete:

"Mariana, minha família agradece o dinheiro, e, mesmo precisando, estamos devolvendo. Você não deve se lembrar, mas, esteve aqui na minha rua há cinco anos. Mostrou na TV o esgoto vazando, os buracos e a falta d`água. Ainda tomou um suco na casa da minha mãe. Depois da reportagem, fizeram a obra. Consertaram tudo. Nossa vida mudou. Feliz do destino que me deu a chance de retribuir sua ajuda."

Mundo pequeno esse.
E o anel, amassadinho, ganhou valor inestimável.
O valor da gratidão.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Curta a Vida Curta

E, enfim, saiu do armário o vestido curto.
Tão curto quanto a vida dela que andava chata.
Diminuiu as medidas para diminuir o marasmo.
No elevador, o último spray de jasmim no cangote.
O cabelo ganha forma num rápido balançar entre as pernas.
Da portaria até o portão do prédio, risca a passarela imaginária cuja plateia tem um só espectador. E ele, abaixa o vidro para acompanhar atentamente o caminhar da moça. Ela entra no carro como se tivesse nascido assim: uma medusa lambuzada de batom nas alturas do salto sete.
Percebe os segundos de olhar estarrecido, logo disfarçado com um "boa noite, moça". No bar da moda, vodka colorida por frutas exóticas. Mesa de frente pro mar que quebrava revolto na areia.
Atenta aos gestos, às mãos que se apoiam, sorrateiramente, nas costas do sofá.
Risos relaxados pelo álcool.
À espera do manobrista, um abraço na calçada espanta a brisa da praia.
Corações sem comando compassam batimentos.
Segue a noite no show de dança com a amiga das pistas.
Ele, de camarote, entre cervejas e amendoins.
Música que embala os sorrisos. Pernas para que te quero.
Um dos pés pede arrego e fica descalço.
Hora de ir.
Madrugada a dentro, o comentário orgulhoso do moço:
_Todos olharam para você hoje... Roubou a noite.

Ah! Vestido curto... Curta e boa é mesmo a vida.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Coisa de mulher

Quando a angústia vem. Compro sapatos.

O solado tinindo me resgata.
Dá altura de mulher combativa.
Envergadura de guerreira abotinada.
Encaixo nos pés a força. E a segurança emana. De baixo pra cima.
Saio no equilíbrio do salto. Caminho rígida como madrinha de bateria. Sou a dona do pagode. Amarras de fita são nós de afeto.
Envolvem tornozelos vacilantes.
E se a cabeça baixa descrente, vejo laços de cetim. O tecido da estima. O couro negro cobre o calcanhar. E me leva pra dançar. Deixa na pista o rastro de alegria.
A borracha impede derrapagens. Traz firmeza nas águas de Março.
Afunda por mim na lama.
Corro na tecnologia do tênis da moda.
E o impulso fosforescente me leva pra longe.
Me calça de esperança.

Quando a angústia vem. Compro sapatos.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

TIRO

A correnteza levou uma amiga.
E mais centenas de pessoas.

Subi a Serra na quarta-feira, poucas horas depois da enxurrada.
Em Itaipava, o cenário da minha infância desfigurado. Montanhas, outrora verdes, derretidas em barro desgovernado.
Lama vermelha, violenta.
Nossa equipe percorreu a estrada do Vale do Cuiabá estarrecida.
Um paraíso arrebentado.
O Rio Santo Antonio, a vegetação, os postes, os carros... Fora do lugar. Retorcidos pela chuva.
E famílias entregues. Paradeiros construídos em décadas, destruídos em segundos.
Engolidos pela terra.
Submersos pela tristeza.

_ Estou com sede. _ disse a criança imunda.

Dei a garrafa de água que achei na bolsa.
Em goles vigorosos, empurrou o pavor goela abaixo.

_Onde está sua família._ perguntei.


_Não sei. Estou perdido_ disse o menino, agora órfão.

Uma senhora descalça, maltrapilha, me abraçou no silêncio das lágrimas.
O marido cavava com as mãos o terreno molhado:

_Aqui embaixo estão meus pais, meus filhos, minha casa. Preciso encontrá-los. Preciso enterrá-los de maneira digna. Esse não pode ser o túmulo deles.
Não pode.

Descrença no olhar do cocheiro diante dos cavalos de raça mortos na beira da estrada.

_Eu não acredito mais em Deus._ gritou ao céus.

Chegamos ao meio da estrada do Vale andando pelos destroços. Sofás, brinquedos, grades, portões de ferro bloqueavam o caminho.
Memórias amontoadas nos cantos.
Corpos eram retirados do que restou de uma casa.
Bombeiros identificavam as vítimas com calma. Um dos 14 mortos ali ainda estava sem nome.
Era uma mulher.
Algo inexplicável me fez aproximar.
A imagem mais forte que já vi.
O susto veio como tiro no peito.
A vista ficou turva. Embaçada pelo dantesco.
Era mesmo Daniela.
Mulher linda. Divertida. Brilhante.
Amiga de poucos e bons momentos.
A notícia mais difícil que já dei.

A correnteza que levou uma amiga,
E mais centenas de pessoas,
Levou também um pouco de mim.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Para Vovó


Vinte e sete pessoas eram mantidas reféns no presídio Bangu 3, na zona oeste do Rio.
Em novembro de 2001, cheguei à TV Globo.
Nunca tinha feito televisão. Nunca tinha pensado em ser repórter de TV. Fiz jornalismo para, um dia quem sabe, escrever reportagens para revistas femininas que tanto lia.
Depois de três anos, entre estágio e contratação na Rádio CBN, fui convidada para um teste na emissora. Aceitei o desafio embalada pela curiosidade.
Durante um mês, fui avaliada pela direção.
Lembro do dia em que recebi a notícia na sala do então chefe Cesar Seabra:

_Você será nossa nova repórter. Começa amanhã.

Gelei.

Naquele momento, fiz apenas um pedido:

_ Por favor, não me ponha ao vivo na primeira semana. Acho que ainda não estou preparada.

Apesar de fazer entradas ao vivo diariamente no Rádio, tinha paúra de imaginar fazê-lo na televisão. No segundo dia, uma terça-feira, minha equipe foi deslocada para Bangu.
A missão seria dar apoio a outra equipe que acompanhava desde cedo a situação.
O presídio estava em guerra. Do lado de fora, ouvíamos os tiros. Patrulhas e ambulâncias entravam e saíam.
Anoiteceu. Tudo parecia estar controlado. O repórter André Luiz Azevedo, um dos mais competentes da casa, decidiu voltar para a redação, na zona sul, e escrever a matéria.
Eu fiquei em Bangu de plantão por ordem da chefia.

Vinte minutos depois, ouvimos uma explosão. Vimos de longe o clarão das chamas.
Liguei para a redação. Avisei que a rebelião tinha se agravado.
Soube então que teria que atualizar as informações ao vivo no Jornal da Globo.
Não haveria tempo para mandar outro repórter para Bangu.

Gelei.

Para acalmar os nervos, fui me maquiar dentro do carro.
Entre as pinceladas de blush, memórias de uma estudante.
Tinha me preparado tanto para aquele dia e agora precisava botar em prática o que aprendi.
Liguei para meu pai avisando sobre a minha estréia na TV.
Ele percebeu meu nervosismo e ficou mais tenso que eu.
Meu pai sempre assistiu aos telejornais da Globo. Imagina ver a filha ao vivo na telinha de casa?

_Mariana, você não é obrigada a fazer isso. Se quiser, vou te buscar aí.

Desliguei às gargalhadas. Deve ser mesmo difícil ver os filhos crescerem.
Decidi focar no ensinamento de Leda Nagle, minha professora na Faculdade:

"Quando falar para a câmera, não pense nos milhares de telespectadores. Pense que está contando um caso para uma pessoa querida".

Chegou a hora. William Waack apresentava o Jornal naquela noite.
Suava muito. As mãos tremiam. Estava escuro na rua e quando a luz do refletor da equipe foi acesa pelo operador, formou-se uma nuvem de mosquitos entorno da lâmpada.
O voo dos insetos me relaxou de certa forma.
Quando o apresentador chamou meu nome, com sotaque alemão, olhei para a lente e visualizei o rosto da minha avó. Me pus a falar para ela. Um pouco rápido, é verdade. Queria me livrar daquele momento.
Os olhos estavam arregalados e o corpo, duro feito um poste. Foram trinta segundos de informação. Eternidade para uma iniciante em rede nacional.

Por fim, deu tudo certo. Não estourei o tempo programado, não tropecei nas palavras.
Depois de dizer, "voltamos ao estúdio", me senti cruzando a linha de chegada da maratona.
Era tanta satisfação que tenho certeza que venci a corrida imaginária.
O telefone não parou mais de tocar.
Me pai, feliz. Amigos emocionados, professores orgulhosos e o chefe aliviado... Um homem de visão e coragem, eu diria.
E veio a ligação mais importante da noite:

_ Você estava magnífica! Tão natural que parecia estar falando comigo aqui na sala.

Palavras estimulantes da minha avó ao telefone...