sábado, 30 de outubro de 2010

Marcenaria

A serra afiada dilacera as ripas.
Som de esmeril ao nascer do sol.
Nos fundos da casa de Búzios, o improvável: uma carpintaria completa.
Estantes de ferro escuro, maquinário pesado, ferragem pelo chão e o radinho AM, aos berros, segue a estrela solitária.
Guiando o corte da tora, com precisão, dedos longos de um velho calvo.
Aquele senhor, capixaba, caxias, saíra menino da acanhada Alegre para o mundo. Estudo e empenho carimbados no passaporte.
Em seis das principais capitais dos quatro cantos, encarnou o modo, a linguagem, a posição de um país.
Carreira sólida como o toco de Araribá, prestes a ser moldado.
O Embaixador, que não é José, é João, vira carpinteiro.

Marcenaria amadora, familiar e intuitiva.

Antecipou o futuro.

A neta indócil, por vezes, invadia o ofício atraída pelo cheiro de cedro. Pelo alarido.
Obediente, apreciava de longe o voo das farpas.
Depois de prontas, cadeiras, casinhas de boneca, de passarinho, ganhavam cor em pinceladas infantis. Uma lambança.
Criação lixada, virava tela para respingos juvenis.
Aquarela a vista e o mar de Manguinhos, debruçado na frente, ficava de lado.
Virava miragem.
Aos seis anos, a pirralha espoleta, repleta em piolhos e bichos do pé, queria cantar, encenar, falar e falar...

_Depois do almoço tem show na varanda, tá vovô?, intimava ela.

Lá vinham então coreografias intermináveis, monólogos desavergonhados, teatrinhos toscos com participações, nada voluntárias, da tímida irmã mais nova e do primo constrangido.
Perspicácia latente do diplomata, mestre em negociações internacionais, em avaliações vocacionais, farejou a verve da magricelinha.
Numa manhã de ventania, respondeu, singelo, aos anseios da neta do meio.

Na bancada, barulho estridente, sujeira, suor. Rabiscos, lavras, aparas, entalhes.
Num encaixe simples, duas peças envernizadas.
Por fim, a cola de sapateiro uniu o quebra-cabeça do destino.

Presente intrigante.
É uma ferramenta? Um martelo de madeira?

_Não, responde o Embaixador.
_É seu primeiro microfone.

Quadrado, sem charme, é verdade. Na ocasião, João também reconhecera em riso.
Logo personalizei o mimo com iniciais em purpurina cor de rosa na canopla. "S.G." ou "Super Gata". Auto elogio típico da insegurança adolescente.

Nas mãos da menina, pra todo lado, o novo brinquedo preferido.
Parceiro que, mesmo afônico, explanou ao balneário o desejo inconsciente, oculto.

Marcenaria familiar, intuitiva.

Antecipou o futuro.

Sigo com ele em punho, vovô...

domingo, 24 de outubro de 2010

Democracia

Sou Mariana, torço pelo Flamengo, tenho medo de avião e, apesar da alegria natural, por vezes, sinto-me só.

E sim, uma pedra atingiu-me recentemente.

Naquela manhã, a jornada começou em um Centro de Convenções acompanhando o governador Sergio Cabral na abertura de uma feira de agências de viagem. O rádio toca:

 _Vá para Campo Grande. Sua equipe é a que está mais perto. O candidato Serra fará caminhada no calçadão no bairro. Ele segue de helicóptero. Se vocês não saírem agora, não chegam a tempo_ disse a subchefe de reportagem.

Seguimos por Santa Cruz. O carro ficou em um estacionamento próximo. Descemos antes, com medo de perder imagens. Fomos a pé atravessando às pressas o comércio da região no rastro das bandeiras do partido. O tucano chega embalado por intermináveis apertos de mão.

Um pequeno grupo inicia um protesto. Olhei de soslaio, sem muita preocupação.
De repente, mais militantes do partido adversário se aproximam.
O cerco então ganha a atenção dos jornalistas.
O calçadão perde espaço. Fica estreito. Lojas fecham as portas.
A guerra barulhenta de jingles não é mais só de sons. Invade o corpo a corpo.
Avancei esgueirando-me entre a multidão enfurecida.
Num relance, vejo Serra envolto em cordão de braços, sem chão para pisar.
Depois, com as duas mãos na cabeça. Algo acerta-me o crânio.
Sangro e saio de cena.

Não sou eleitora de Serra, não sou eleitora de Dilma. Não sou fita-crepe, não sou de pedra.
E sim, algo fez-me doer. Carrego agora um peso morto. Sólido. Bolinhas de papel? Bexiga d´água? Não importa. O que abriu-me o couro, caiu como maçã de Newton.
Despertou reflexão muito mais ampla.
Tem alcance maior que objetos não identificados.
No pós-pedrada, sou incondicional.
Defendo com fervor incomum a liberdade política,o ir e vir, a exposição de ideias, a imprensa livre.
Sem bloqueios ou cerceamentos.
O pensamento parece medíocre e utópico diante das conjecturas do pesquisador inglês sobre a gravitação universal. Para mim, merece a mesma atenção.
Por enquanto, anseios que permeiam meus sonhos.
Na vida real, não sei em quem votar.

Sou Mariana, torço pelo flamengo, tenho medo de avião e, apesar da alegria natural, por vezes, sinto-me só. E sim, aguardo a DEMOCRACIA atingir-me a cuca. Abrir uma nesga profunda.
Será esta a ferida que não pretendo sarar.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Até Cansar


Tempo precioso.
Que voa feito gavião.
Perco-te em pensamentos?

Tempo dourado.
Da juventude veloz.
Desperdiço-te em teimosia?

Tempo meu...
Seja amigo da intuição.
Compasse o ritmo da insistência.
Confirme, em segundos, a descoberta.
E, em minutos, minha certeza.

Que ponteiros parem os instantes.
Que horas soprem rompantes.
Deixe-me seguir o caminho cruel.

Na paixão, esqueço que tens fim.

Tempo. Dê-me mais tempo.
Não quero partir das minhas vontades...

domingo, 3 de outubro de 2010

Aposta


Eleições presidenciais de 2006.
Lula lutava pela reeleição.
Geraldo Alckmim tentava arrastar o pleito para o segundo turno.
Cheguei ao trabalho cedinho. Primeira tarefa?
Acompanhar o voto do então prefeito do Rio, Cesar Maia.

A zona eleitoral onde vota o democrata fica no Hotel Intercontinental em São Conrado, na zona sul. Maia é sempre um dos primeiros a chegar à seção, com sua indefectível jaqueta azul marinho e um jornal embaixo do braço.

As pesquisas apontavam para uma vitória de Lula, com pouca chance de novo embate nas urnas naquela eleição.
Logo cercado por jornalistas, Maia foi taxativo:

_Não tenho dúvida. Haverá segundo turno. Fiz meus cálculos hoje de manhã.

Contestamos a afirmação apresentando os recentes dados dos institutos. Números que não desanimaram o alcaide.
Em uma das mãos, eu empunhava o microfone, na outra, segurava meu telefone celular. Lembro que o aparelho era dos mais modernos da época.
Ganhara da operadora como bônus em promoção. Estava tinindo de novo.

De repente, a proposta de Maia:

_ Tenho tanta certeza que Alckmin vai com força para o segundo turno que sou capaz de apostar com você.

_ Apostaremos o que prefeito?

_Você me dá seu celular se meu candidato for para o segundo turno, e se ele não for, te dou meu apartamento_ em tom irônico.

Aposta firmada com aperto de mão e até registro dos fotógrafos presentes para a posteridade.
Encerrei a entrevista com o sonho vivo da casa própria.
Comecei até a programar a mudança...

No dia seguinte, a aposta ousada do prefeito foi comentada na mídia. Virou notinha de coluna política no jornal.

Meu sonho foi curto. Chegou ao fim logo após a apuração.

Alckmim conseguira votos suficientes para prolongar o duelo com o petista.

Semanas depois, em conversa com a assessora de comunicação do prefeito, Agatha Messina, o assunto voltou:

_ Cesar Maia, outro dia, lembrou da aposta que firmou com você. Está esperando o telefone novo.

Na manhã seguinte, enviei um cartão pessoal ao gabinete da prefeitura.

No envelope, o recorte da foto de um celular e a frase: Caro prefeito, Devo, não nego, pago quando puder... Por hora, guarde este telefone de papel no bolso. Eu tenho missão bem mais árdua: Guardar o apartamento na memória.