Tiros anunciavam o alvorecer no Salgueiro.
O Morro da Tijuca, do samba, do bamba.. Em guerra.
Era o segundo dia de 2001.
Traficantes rivais disputavam território.
Famílias e repórteres em madrugada encurralada.
Barracos e bares fechados.
Então repórter da Rádio CBN, me encolhi na soleira de um sobrado.
Balas triscavam a fuça, como varejeiras na orelha do boi.
Três horas ao som dos disparos.
Os fuzis se calam.
Moradores também.
Saio da trincheira.
Desço a ladeira apressada.
Tão íngreme quanto a parede, crivada de balas.
Zumbido constante no ouvido.
Trauma eterno na memória.
E mais uma reportagem violenta para narrar.
Passei aquela semana falando sobre o caso.
Comigo mesma.
Decidi não contar em casa o que vivi.
Eles não entenderiam.
Também não me atrevi a subir o Salgueiro novamente.
Na saída, fiz juramento no pé do Morro.
No último sábado, quebrei a promessa.
Dez anos depois.
A reportagem era sobre uma festa. Um ano de ocupação policial.
Na subida, a cada curva, a pincelada de um retrato.
A imagem de mim mesma refeita na lembrança.
Enxerguei a iniciante assustada, à perfeição.
Em cada esquina.
Até o cheiro de pólvora ventou do passado.
Encontrei a favela receptiva.
Com bandeirinhas e crianças empurrando ladeira acima.
Com Zico em campo na pelada com os moleques.
A menininha no banho de mangueira no quintal.
O aroma do feijão no fogo.
Pontos de observação do tráfico eram lajes.
Apenas lajes.
E roupas penduradas com esmero por Dona Áurea, quarenta anos de Salgueiro.
Debruçada no tanque, profetizou:
_Nasci e vou morrer aqui. Não largo o Morro por nada.
E desta vez, o som do Salgueiro foi diferente.
Foi canção de Herivelto:
"Tem alvorada, Tem passarada
Ao alvorecer,
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer
Alvorada lá no morro que beleza"
Volto já, Salgueiro. Volto já.