sábado, 19 de junho de 2010

A vida alheia

Um ano e meio na Gávea.
Em dias úteis, o apartamento vira quarto de hotel.
Clássica tríplice dos proletários: Banho, jantar e cama.
Terça passada, madruguei, trabalhei e, milagrosamente, voltei cedo ao meu, digamos, Meridien.

Na agenda, nem manicure, nem ginástica, muito menos exame periódico.
O compromisso era um só:

Ficar em casa. Um deleite. Uma riqueza.

Apreciei, sem pressa, a chegada do sol. A hora exata da invasão de luz na fachada. Raios que inspiram o humor de qualquer um. Som de passarinhos. O recanto bucólico recebe visitas encantadoras de manhã. Andorinhas, periquitos e até tucanos debruçam na varanda. Como quase nunca estou em casa de manhã, a revoada se espanta comigo.

Quebrei o gelo oferecendo parte do meu café da manhã.
Morangos e bananas divididos irmãmente.

Sem alarmes ligados, o sono da beleza no sofá, agarrada a quatro almofadas.
Um aroma inebriante de carne assada toma conta da sala alertando que é hora do almoço.

João Pedro chega da escola e exclama na garagem:

_O carro da minha namorada está aí, mamãe!

Meu vizinho de andar tem apenas cinco anos. Um dengo só com a moça do fusquinha prata que vos escreve. Menino esperto. Ganhou bombom de sobremesa.

De repente, o aviso infeliz de que a vida segue lá fora: Toca o interfone.

_Quem fala? Pergunta a voz sinistra.
_É Mariana. Quem é?
_Cabo Ferreira da Polícia Militar.

Pausa para o inusitado. A veia jornalística infla feito balão com ar quente.

Uma patrulha chegara ao prédio para averiguar denúncia.
Uma mulher estaria sendo espancada aqui.
Vou pra janela incrédula. Lá estavam dois Pms invadindo com fuzis meu paraíso.
Ouço gritos agudos nas redondezas.
Sem susto, dei risada.

Era o diretor de teatro do terceiro andar ensaiando esquete com uma estrela global.
Atuação tão convincente, que alarmou a vizinhança.
Ensaio com imediata aprovação de público, crítica e polícia...
Soldado Marcos e Cabo Ferreira deram meia volta, frustrados.

Enquanto isso, no primeiro andar, o médico comemora gol da Nigéria.
Antes do fim do jogo, uma ambulância pára no portão para sequestrar o doutor.
A emergência acabou com a torcida. Calou a vuvuzela.

Começa a reunião de condomínio no pilotis. À essa altura, agradeço por não ser proprietária do imóvel. Desavenças e reclamações rompem o resquício de silêncio. Difícil mesmo é não ficar escutando. Como ignorar diálogos tão hilários? Pincei uma, entre as inúmeras frases de pura finesse literária do encontro:

_Você é um porco que joga guimba de cigarro no meu capô! Vai pagar a pintura, fumante imundo!

Moradores em franca batalha e eu, de pantufas, tomando chá de camarote.

Antenas continuaram ligadas no fim da tarde diante de barulho animado no andar de cima.
A moradora cinquentona, de namorado novo, embala o teto com um festival de percussão.
Peripécias sexuais que não se limitam ao quarto. Na cozinha foi um transe.
O casal que perdoe a intromissão mas, a calmaria da Rua, não encobre sussuros.
Muito menos gemidos vigorosos.
Como orelha não tem pálpebra, acompanhei boa parte da festa.

Feliz em saber que existe tal tesão entre coroas às quatro da tarde num início de semana.
Tudo muito saudável, muito constrangedor, muito divertido.
Deixo os pombinhos em paz e gasto minha energia pintando as portas da sala, amareladas pela intensa umidade.

Na escada, entre pinceladas na soleira de entrada, um desfile de agradecimentos:
A celebridade aplaude minha intervenção junto à polícia,
o garoto surge fagueiro com boca lambuzada de chocolate
e a vizinha devoradora flutua nos degraus.

Essa, nem me viu...
Ficar em casa. Um deleite. Uma riqueza.