segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Desabafo na Urca

Era a estréia de um novo equipamento da emissora.
O motolink é compacto.
Transporta em duas rodas toda a parafernália necessária para uma entrada ao vivo.
Nas eleições de 2006, eu e o repórter cinematográfico Alberto Fernandez, percorremos a cidade com a moto. Na zona eleitoral da Urca, no fim da tarde, uma surpresa: Surge Roberto Carlos a pé com dois seguranças.

O Rei fora votar. Fomos junto. Na saída, uma entrevista rápida, inesperada. Foi meu primeiro encontro com o Rei, em serviço. Mal sabia eu que viria outro, bem mais inesquecível.
No ano passado, fui escalada para acompanhar uma gravação também na Urca. Seria no estúdio do ídolo. Cheguei toda de branco.
O assessor de Roberto nos atendeu. Aguardamos na sala.
Um ambiente amplo, iluminado, com imagens religiosas e tapetes escovados.
De repente aparece o cantor, vestido de camisa jeans.
Extremamente atencioso com os súditos invasores.

_Já ofereceram um cafezinho pra vocês?

E depois, mais pergunta:

_ Qual é mesmo a música que tenho que cantar na reportagem?

_Fica a seu critério. Todas são incríveis_ respondi.

_Escolhe você, então_ disse o Rei.

Pedi a infalível "Detalhes" e outra menos conhecida, mas, não menos encantadora, "Olha".
Câmeras posicionadas, luzes calibradas e lá estava Roberto Carlos, debruçado em seu pedestal, num show privê para nós.
Um privilégio.
Ao ouvir "não adianta nem tentar me esquecer...", me emocionei. Vivia o término de um namoro longo. Enfrentava aquela fase doída do choro fácil. Com tal trilha sonora, não há coração que aguente firme. Rolava a canção e eu disfarçava as lágrimas no canto do estúdio, embaixo dos óculos escuros.

Não adiantou muito... Quando acabou a música, veio ele:

_Por que tanta tristeza, menina? O que houve?

Nessa hora, devia ter me lembrado da famosa desculpa do "cisco no olho" ou da providencial "alergia à lente de contato"... Não deu. Disse a verdade.
Seguiu-se um desabafo inusitado com o Rei. Um carinho curioso.
Ele queria ouvir meus detalhes tão pequenos.
Coisas muito grandes pra esquecer e muito difíceis de admitir.
Minha equipe observava estarrecida a sessão de análise improvável.
Quando tentava encerrar a cena e retomar a gravação, vinha ele com mais perguntas sobre meu ex. Sobre nossa briga. Em poucos minutos, me deu conselhos valiosos e, por fim, me abraçou.
Lágrimas constrangedoras brotaram de novo e molharam a camisa do Rei.
Como seguiríamos com a gravação? E a continuidade das imagens?

_Não tem problema, minha querida, tenho outra igual lá no armário.
Pode chorar a vontade._ disse ele.

Conversa revigorante aquela.
No elevador, aturei as brincadeiras inevitáveis da equipe, ainda chocada com meu desprendimento...
Respondi rindo:

"Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi."

Carta de um amigo

Música para leitura: Killer Queen Para Mariana Gosto dela. Principalmente quando dá aquelas gargalhadas silenciosas. É um momento delicioso e curioso, porque consegue fechar apenas um dos olhos (se não me falha a memória, o esquerdo) e leva a mão (aí, sim, a direita) espalmada perto da boca, como se quisesse esconder o som invisível de seu riso. É de tirar o fôlego. Em forma de éle, ela quase que encaixa o polegar no queixo, enquanto o indicador encosta levemente na ponta do nariz. Como se sua risada fosse um segredo aberto: uma tosse de ternura. Sabe como é, né, Vinicius? A gente se conheceu na redação. Não lembro bem como foram as primeiras palavras, mas ela vinha sempre cheia de ginga e de gíria. Sabia que não era seu jeito, mas uma forma de se aproximar de um garotão de 22 anos, meio zona sul, meio metido a malandro. Ela é observadora. Fala bastante, porém a mesma destreza das palavras proferidas lhe serve das que sabe ouvir. Quando presta atenção às coisas, espreme as sobrancelhas, aperta os olhinhos castanhos e fica levantando e abaixando a cabeça rapidamente, em movimentos curtos, mostrando não só que está entendendo o assunto, além de, claro, demonstrar interesse, mas também expressa, à sua maneira, uma forma de pedir - e consentir - que a história a qual atenta possa prosseguir. Eis que um dia ela me aparece e me faz a seguinte pergunta: “Você já voou de helicóptero?”. Senti um friozinho na barriga, porque tal curiosidade não viria sem propósito. Respondi ansiosamente que não, mas fingi uma calma que, de tão forçada, acabei errando a mão e quase fiz da indiferença um desdém. É óbvio que ela não percebeu – nunca perceberia. Ela devolve: “Quer voar comigo no Globocop?”. Não preciso dizer qual foi a resposta. Portanto, ela continuou: “Faz o seguinte: inventa uma pauta qualquer, vende pra chefia. Chega na redação às seis (da manhã) em ponto”. Mal sabia ela que já estava nas alturas antes mesmo de alçar voo. Cheguei na hora combinada. Vesti uma camisa social branca (nunca vou saber o porquê) e fomos para o heliponto. Para ela, nada demais. Para este aqui: tudo. Fui apresentando ao piloto e ao cinegrafista. Embarcamos. O som das hélices preguiçosas girando, agora, nervosas. Estava amanhecendo dentro e fora daquele instante. Não conseguia fazer mais nada a não ser encarar Mariana, como se esperasse instruções para o próximo passo: caminhar nas nuvens. Decolamos. Passeio pelo Dois Irmãos, Vidigal tranqüilo, incêndio no Flamengo, escada magirus fazendo cosquinha no pé. Um voo de meia-hora, mas que nunca terminou... E aí, percebo Mariana anotando, a duras penas, as máximas e mínimas previstas para algumas cidades do estado. Atenciosa. Mas a pressa do tempo acaba atrapalhando o zelo, e os papéis onde tinha anotado as temperaturas esvoaçaram pela cabine. Mas não percebemos. Quando era chegada a hora de entrar ao vivo, a doce Mariana arregala os olhos, abre a boca, suspende as sobrancelhas e vejo o desespero transbordando invisível pelas suas mãos estabanadas gesticulando para mim alguma coisa para que pudesse lhe ajudar. Meu nervosismo deu lugar a uma serenidade inexplicável e simplesmente procurei debaixo do banco onde estávamos: lá estava o rabisco dela, com os números anotados em centígrados. Que suspirada, hein, moça? Alívio. Ela me agradece até hoje. E eu também. Outra vez, agorinha mesmo, fui parar nas nuvens com ela. De novo. Como se deu? De helicóptero. Outras circunstâncias, outros tempos. Talvez o vento fosse o mesmo que nos levasse pra lá, para o alto, para o céu: para as estrelas. Afinal, ela tem luz própria. Mesmo que, ao nosso redor, juntamente com outras duas jornalistas, houvesse três metralhadoras e cinco policiais. Mesmo que esta aeronave fosse blindada, que nos protegesse de algum perigo que não estivesse ali, porque não há certos ensaios para certas ocasiões. Talvez a blindagem não fosse à prova das coincidências. Era a segunda vez na vida que voava de helicóptero. E era a segunda vez que estive com ela nas alturas. É a única mulher que me deixou nas nuvens, mesmo em dias de céu claro. Mesmo despretensiosamente numa vez, mesmo acidentalmente noutra. Sim, ela tem esse dom. Quando faço uma visita: Ela pergunta se não quero beber alguma coisa, depois lista as bebidas que tem na geladeira. Das que não tem na geladeira. Depois quer saber se estou com fome. Que pode fazer alguma coisa rapidinho, que não dá trabalho nenhum. Eu até tinha fome certas vezes, mas não queria parar a conversa ali. Quando o papo fica bom é fogo. E muda a posição, cruza as pernas, descruza as pernas, toca o telefone. Pede licença e atende. Às vezes, também quando toca o telefone, pede licença e não atende. Prefere continuar com suas histórias, que ficam um pouco minhas também, porque algumas só eu fico sabendo, ela gosta de me contar as coisas. Quando o papo fica bom é fogo. E é bom quando rimos das nossas desilusões amorosas, das nossas ilusões amorosas, das fofocas do trabalho, da saudade de meu pai, sobre casamento, suas histórias engraçadas e “típicas da Mariana”, de suas amigas com sobrenome de cobertura, de quantas vezes perdeu o celular, das novidades de morar sozinha, das novidades de viver uma vida literária, de palavras: de poesia. Gosto dela. De lá pra cá, nossos laços se estreitaram. Mas não foi depressa, não. Não ficamos amigos logo. Seis anos depois, sim, que posso dizer que me orgulho de tê-la em minha vida. Gostava de vê-la chegando, às vezes, mal humorada na redação bem cedinho. Escondida atrás de um rayban, sintonizada sempre com seu ipod (mas apenas um ouvido no fone, o outro ficava livre, acho que para prestar atenção nas coisas, jornalista esperta que é), sempre vinha à subchefia buscar a pauta. E aí contava uma história engraçada, colecionando sorrisos dos colegas, desopilando o clima pesado das manhãs violentas da cidade. Sim, a Mariana é muito engraçada. Ela é charmosa, ela é boa de papo. Talentosa: a Mariana brilha. Mas gosto mais de seu lado sério, quando ouve nossas palavras, quando nos prepara um jantar improvisado, quando serve um espumante rosé, um vodka com suco de laranja natural, um vinho, uma coca zero, uma água: quando nos acolhe pelo estômago. E pelo coração.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

NY-ALEMÃO


Nem mesmo as vitrines pirotécnicas.
Nem mesmo as cores do Parque no outono.
Muito menos o vinho francês no bistrô ou a promoção de sapatos italianos.

As notícias do canal internacional sobre o Rio de Janeiro causavam urticária. Coceira jornalística agravada pela distância.

Nos últimos dias da viagem, as luzes da Quinta Avenida já não chamavam a atenção. Minha cidade começava a derrubar suas mais altas torres da violência. Vivia situação oposta a da Big Apple.
A queda de nosso World Trade Center do tráfico era inevitável, necessária, sonhada. A fortaleza impenetrável dos algozes ia virar escombro.
Como seguir pisando em folhas secas?
Voltei.

A rota NY-Alemão emendou no voo de helicóptero pelo Conjunto de Favelas da Penha, sem escalas. Passeio surreal ainda sob os efeitos da viagem de avião da madrugada.
Traficantes, seguiam valentes, apontavam as armas para cima, para nós.
Décadas de domínio e impunidade devassadas pelas lentes, ao vivo.
A nitidez era tanta que eu nem precisava narrar, só mostrar.
Não eram bandidos, era uma quadrilha em todo o esplendor do coletivo.
No entorno da Favela, tanques posicionados para a invasão.
O olhar estarrecido do cinegrafista do Globocop sublinhou a cobertura histórica.

Sem intervalos, sem caprichos, sem amenidades. A notícia em seu primor, do ar, no ar, crua.

Nas veias, corria o hormônio revigorante da profissão que escolhi, que cura ressaca de voo e o aperto da bexiga.

Sensação estranha. Ontem seguia sem hora, sem rumo nas Ruas sem nome da capital do mundo.
Hoje seguia alerta, desperta, coberta de memórias atrozes. De toda uma época de ameaças e mortes estúpidas naquela região.

Quando avistei as bandeiras do Rio e do Brasil tremulando no alto do Complexo, engoli seco, narrei e chorei baixinho. Em pensar que naquelas montanhas tantos perderam a vida torturados por um grupo de terroristas descamisados. O sorriso largo de Tim Lopes voltou para mim como relâmpago iluminando a chuva.

No dia seguinte, em terra, o contato com moradores do Conjunto carinhosos como nunca.

Uma menina de trancinhas seguia apressada. Me olhou e sorriu. Na volta, largou a mão do pai e abraçou-me as pernas com perguntas comoventes:

 _Vocês não vão mais embora, né? Promete que vão ficar aqui?

De repente, avisto um senhor de cara manjada caminhando sozinho pelas vielas.
Mais um jornalista que queria ver de perto a retomada da estima carioca. Anotar na retina dados para mais uma coluna.
O brilhante Zuenir Ventura foi patrono de minha formatura na Faculdade.
Sigo aprendendo com ele.

Que bom que voltei. Que bom, meu Rio...