sábado, 25 de setembro de 2010

Homo Gênio


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos
Vira uns de pernas para o ar
Põe uns em cima dos outros

E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono

Ele invade minha intimidade
E até me constrange
E se diverte com meus gritos
Acalma meu rubor
Põe as pernas sobre as minhas

E bate palmas sozinho
Sorrindo para minha entrega.

Ele se descontrola de desejo
E às vezes expõe seu fervor
Me prende em casa ao som dos pingos
Arrefece meus vôos à vinho
Põe as mãos em meu couro

E durmo no embalo da respiração
Sorrindo para o encontro.

Ele quer mais
Quer sempre mais, não só de mim
Perfura sutilmente meu bloqueio
Desafia minha paciência
Põe lenha no fogo

E bate palmas sozinho
Sorrindo para a sorte.

Ele é onipresente nas canções
No dedilhar da viola aprendiz
No riso franzido de nariz
No Rolling Stones do fim de noite

Põe no pires meu orgulho

e bate palmas sozinho
Sorrindo para mim.

Ele é homem.
Homo Gênio.

Escrito depois de ler Fernando Pessoa numa tarde chuvosa.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Fragmentos

Chuvisco revela o cheiro da terra. O sol se esconde cor de rosa. E vem a lua. Corta o céu com sorriso crescente. Rastro de estrela aponta o caminho. Vênus que brilha em minha fachada. De tão boa, a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger. Vontade de dar gritos, de ficar no chão, de sair, Para fora de todas as casas, de todas as lógicas, de todas as sacadas, e ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos. Entre tombos e ausência de amanhãs. Tudo isto devia ser qualquer outra coisa parecida com o que penso, com o que sinto, que eu nem sei o que é. Fui ao encontro de mim. Descubro. Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar. Neste texto, minhas palavras e fragmentos de poemas de mestres das palavras: Clarice Lispector e Álvaro de Campos.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Estupidez


Sou eu quem me governa.
Atravesso o asfalto liso.
Sem faixas para me guiar.
Longe de sinais luminosos que fream passos.
Egoísmo poderoso que arrefece automóveis, atropela os fracos.
A buzina é instrumento de tortura.
Nas frações de segundo do verde, propago o barulho vermelho. Cores da minha aquarela intolerante.

O carro sobre a calçada sai à reboque. Vou vê-lo de novo, eu sei.
Pago o habeas corpus. Estaciono de novo.
Rodas paralíticas, recém-nascidas, que enfrentem pistas aceleradas.

O toque estridente do telefone invade a cena do teatro.
Vida que não se desliga por outros personagens, que não eu.
E a garrafinha plástica, camuflada na entrada, largo no chão.
Estímulo à faxina do pós-espetáculo.

A areia da praia é túmulo dos canudinhos que lambi.
Daqui a cem anos, relíquias nas ondas negras do mar.
Feliz de quem achar.

Meus restos se misturam no gordo saco de lixo.
O que descartei, decomposto pelo tempo, jamais pela reciclagem.
Moscas varejeiras, insetos nocivos, garantem a eternidade.
Sou altruísta.

Não me interessa para onde vai o que expeli.
No fundo, torço para que esteja navegando nas águas da Lagoa.
Vai dejeto, faça os peixes boiarem podres.
Permeie a cidade com seu perfume.

Meus apertos líquidos se aliviam nos canteiros.
À luz do dia, brilham no tronco da amendoeira centenária do Leblon.

Me fascinam bueiros entupidos no temporal.
Guimbas dançam conforme a música alta que incomoda os vizinhos. Redemoinhos vigorosos da estupidez.
Retratos fiéis de mim.
De um Carnaval que não escoa.

Sou eu quem me governa.
Sou eu, um cidadão carioca.
Quero meu crachá, nêm.

domingo, 5 de setembro de 2010

Sábio Quintana


A equipe de reportagem seguiu para a Fiocruz.
Era a inauguração do borboletário: uma casa de uns quarenta metros quadrados, revestida de tela, com flores e plantas pra todo lado. Curiosos, adentramos o paraíso das borboletas com cuidado para não pisar em nenhuma.
O desafio maior foi fazer imagens de dezenas de insetos inquietos.
A cada virada de câmera, eles voavam em bando.
Sentei num banco de canto para acompanhar o trabalho hercúleo do repórter cinematográfico.

_Elas são muito arredias._ disse o especialista da Fundação.

De repente, um belo exemplar pousou, sorrateiramente, no dorso da minha mão esquerda. Era da espécie "Júlia" com asas alaranjadas e tamanho médio. Fiquei imóvel.
Já a borboleta estava a vontade.
Logo desenrolou sua lingüinha negra e pôs-se a sugar algo.
Para surpresa geral, a nova amiga adotou minha mão como puleiro.
Ali refastelou-se por uns vinte minutos.
Gravei, atendi o celular, caminhei e ela não ameaçou decolar.
O relaxamento era tal que "Julia" fez até pipi.
Duas gotículas quase imperceptíveis. Soube que é um elixir afrodisíaco...

_Um dos fluidos mais límpidos da natureza. Na China, é vendido a peso de ouro.

Na dúvida, colhi o material inodoro com o polegar, espalhei na nuca e agradeci o presente.

O especialista seguia impressionado com o atrevimento:

_Há tempos não via isso. Ela não quer mais sair daí.

Enquanto observava o descanso da borboleta em mim, lembrei das palavras do poeta:

"O segredo é não correr atrás das borboletas... é cuidar do jardim para que elas venham até você. No final das contas, você vai achar, não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você..!"

Por fim, a borboleta virou-se lentamente de frente, como se me encarasse. Abriu as asas e partiu.
Em seu repouso, ela não sugou.
Depositou foi inspiração em mim.

Viva Quintana.
Que venham as borboletas...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Primitiva

Primícias do amor inexplicável.
Afeto em seu primórdio inevitável.
De novo principiante.
Sente arder.
E disfarça privativo ardor.

De repente a primazia:
Esquece princípios.
Salta a privança.
Foge da prisão.
Irradia o instante em raro prisma.

Prima imagem indigesta.
Da tua festa primaz de mim.
Paixão primitiva.
Primor de sentimento.

Privilégio de quem é. E sou.

Primogênito dos homens.
Alvo principal.
Me faz primária.
Me faz princesa.
Brindemos à prioridade.
Sem privações. Ou priscos.

Só primaveras...