quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

NY-ALEMÃO


Nem mesmo as vitrines pirotécnicas.
Nem mesmo as cores do Parque no outono.
Muito menos o vinho francês no bistrô ou a promoção de sapatos italianos.

As notícias do canal internacional sobre o Rio de Janeiro causavam urticária. Coceira jornalística agravada pela distância.

Nos últimos dias da viagem, as luzes da Quinta Avenida já não chamavam a atenção. Minha cidade começava a derrubar suas mais altas torres da violência. Vivia situação oposta a da Big Apple.
A queda de nosso World Trade Center do tráfico era inevitável, necessária, sonhada. A fortaleza impenetrável dos algozes ia virar escombro.
Como seguir pisando em folhas secas?
Voltei.

A rota NY-Alemão emendou no voo de helicóptero pelo Conjunto de Favelas da Penha, sem escalas. Passeio surreal ainda sob os efeitos da viagem de avião da madrugada.
Traficantes, seguiam valentes, apontavam as armas para cima, para nós.
Décadas de domínio e impunidade devassadas pelas lentes, ao vivo.
A nitidez era tanta que eu nem precisava narrar, só mostrar.
Não eram bandidos, era uma quadrilha em todo o esplendor do coletivo.
No entorno da Favela, tanques posicionados para a invasão.
O olhar estarrecido do cinegrafista do Globocop sublinhou a cobertura histórica.

Sem intervalos, sem caprichos, sem amenidades. A notícia em seu primor, do ar, no ar, crua.

Nas veias, corria o hormônio revigorante da profissão que escolhi, que cura ressaca de voo e o aperto da bexiga.

Sensação estranha. Ontem seguia sem hora, sem rumo nas Ruas sem nome da capital do mundo.
Hoje seguia alerta, desperta, coberta de memórias atrozes. De toda uma época de ameaças e mortes estúpidas naquela região.

Quando avistei as bandeiras do Rio e do Brasil tremulando no alto do Complexo, engoli seco, narrei e chorei baixinho. Em pensar que naquelas montanhas tantos perderam a vida torturados por um grupo de terroristas descamisados. O sorriso largo de Tim Lopes voltou para mim como relâmpago iluminando a chuva.

No dia seguinte, em terra, o contato com moradores do Conjunto carinhosos como nunca.

Uma menina de trancinhas seguia apressada. Me olhou e sorriu. Na volta, largou a mão do pai e abraçou-me as pernas com perguntas comoventes:

 _Vocês não vão mais embora, né? Promete que vão ficar aqui?

De repente, avisto um senhor de cara manjada caminhando sozinho pelas vielas.
Mais um jornalista que queria ver de perto a retomada da estima carioca. Anotar na retina dados para mais uma coluna.
O brilhante Zuenir Ventura foi patrono de minha formatura na Faculdade.
Sigo aprendendo com ele.

Que bom que voltei. Que bom, meu Rio...

sábado, 13 de novembro de 2010

Sem fecho


Atrás da sobrancelha
No fundo da retina
Sob a telha
Parado na esquina

Qualquer esquina.

Na entranha recôndita
No azul da alma
Em música bendita
Nas linhas da palma

Da minha palma.

Nas letras que escrevo
Cores que enxergo
Em alto relevo
Nas dores que envergo

Mas não quebro.

És corrente sem fecho
Poro da pele
Fim sem desfecho?
Que o tempo revele

Revele.

Porque não escondo mais.
Sinto.
E digo.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

É big, é big...

Dia seis de abril de 2010, quatro e meia da manhã.
O telefone toca estridente. Espeta o sono como agulha na ponta do dedão.

 _Vem pra cá. Precisamos de você.

Lá fora, a noite seguia molhada. Encharcada. Horas torrenciais.
A ladeira da minha rua era leito para um rio inédito que descia voraz do alto da Gávea.
Larguei a cozinha surpreendentemente alagada.
Galochas, capa e lá fui eu a pé para o bairro vizinho.
Na esquina escura, um mendigo se equilibrando no muro de uma mansão:

_ A moça endoidou? Vai sair andando pra onde? _perguntou ele.

Consegui chegar até o Hospital Miguel Couto onde uma fila de ônibus fora barrada pela enorme poça.
Por acaso, encontrei uma equipe da Globo. Me juntei ao grupo. Começava aí uma maratona de quinze horas ininterruptas de trabalho no dia em que a chuva paralisou boa parte do Estado.

Pobre Dona Amélia. Saíra de noite da Baixada Fluminense para uma entrevista de emprego na zona sul. Acabou ilhada no banco do coletivo. Ao lado, uma mãe tentava acalmar a criança no meio do dilúvio. Olhares de espanto, de desamparo.

Fomos para o Túnel Rebouças, principal ligação entre as zonas norte e sul da cidade.
O carro navegou até lá. Os acessos estavam com mais de um metro de inundação.
Centenas de motoristas seguiam presos nas galerias sem rota de fuga.
Era preciso esperar o nível da água baixar, mas o temporal não dava trégua.
Paramos ali.
A Lagoa Rodrigo de Freitas, transbordava em lama e esgoto.
Bueiros eram puro enfeite.
Enquanto entrava ao vivo nos telejornais, os pingos batiam forte no rosto.
A água invadia a galocha e enrugava os dedos.
 Em poucos minutos, a roupa ensopada.
Lacraias e baratas surgiam boiando na enchente.
Por vezes se aproximavam de meu jeans submerso.

_Falamos ao vivo da Lagoa, zona sul da cidade. Se você está em casa, fique onde está. Essa é a recomendação da Defesa Civil. _ dizia eu.

De repente, o cinegrafista Carlayle André me manda afastar às pressas. Ventava forte e uma árvore ameaçava desabar em nossa direção.
À tarde, já com a rua mais seca, uma amiga que mora ali perto desceu com meias e camisas.
Me assistiu durante toda a manhã na TV e teve clemência. Tirou a foto que ilustra este texto.
Fiz a troca de roupa no banco do carro. O gesto piedoso deu ânimo.
Sabia que a cobertura não teria hora para acabar.

Em um raro minuto de descanso, encostei no capô do carro e rezei para São Pedro.
Nasci no Rio e nunca tinha visto tal revolta natural.

Por volta das sete da noite, a chuva diminuiu.
Cheguei em casa às 10 e, por orientação do departamento médico da empresa, no banho, lavei o corpo com uma mistura de cloro.

 Olhei no espelho do banheiro e disse a última frase do dia:

_Parabéns Mariana. Muitos anos de vida.

Aquela terça-feira de abril era dia do meu aniversário...

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Certezas?

Tenho algumas certezas na vida. Sei que um dia vou morrer.
Também sei que, enquanto for repórter, trabalharei no Dia de Finados.
Mais precisamente, em algum cemitério da cidade. E, embaixo de chuva... Em doze anos de carreira, nunca escapei.

Em 2008, lá estava eu em um dos maiores cemitérios da América Latina. O Caju na zona portuária. Comecei a reportar o movimento de visitantes cedinho. Eram esperadas milhares de pessoas.
Depois de inúmeras entradas ao vivo, tinha a missão de gravar reportagem para o RJTV. Seguimos em direção aos túmulos das celebridades, que ficam mais cheios.
No canto direito, onde descansa Noel Rosa, umbandistas entoavam canções do poeta da Vila.
Entre charutos e tambores, ganhei até um passe.
Nunca soube se Noel era ou não umbandista...
Mas, foi bonita a homenagem.
No meio da multidão, surgem dois coveiros. Dois senhores, veteranos das sepulturas, que vieram revelar à nossa equipe curiosidades mórbidas:

_Sabia que Dona Zica, viúva de Cartola, vinha visitar o túmulo dele toda semana? Trazia sempre uma florzinha branca, rezava e cantava baixinho.

_Já Jamelão, intérprete da Mangueira, foi sepultado com elásticos entre os dedos. Parece que ele tinha mania desses elásticos.

A revelação mais intrigante porém, veio depois:

_Tim Maia está enterrado aqui há um tempão. E, de uns meses pra cá, ele deu pra cantar à noite. Outro dia, ouvimos o repertório quase todo.

_E aplaudiram ao menos? _perguntei

 _Claro! Somos fãs do cara.

Depois da conversa, decidimos ficar perto do túmulo de Tim. O cinegrafista deixou a câmera gravando sem parar. O sol foi se pondo. O cemitério, esvaziando. Nos propusemos a ficar além do horário.
Podia partir daí uma inédita reportagem para o Fantástico, nos dez anos de morte do cantor.
Eu ainda seguia corajosa. Quando realmente anoiteceu, veio o receio.
Se ouvisse um "Vale Tudo" ou um "Me dê motivo" de repente? Ia ter correria.

Foram horas em silêncio sepulcral na expectativa. Os dois coveiros trabalhavam há mais de 20 anos no Caju. Estavam danados com a timidez de Tim:

 _Não vai cantar hoje não, é? _clamavam.

No caso dos coveiros, eram três as certezas:
Eles sabiam que um dia iam morrer,que iam trabalhar sempre no feriado de Finados, E que almas penadas existem.

Tim Maia ficou mudo naquele dia. Não apareceu para o show.
Talvez, fosse ele mesmo...

sábado, 30 de outubro de 2010

Marcenaria

A serra afiada dilacera as ripas.
Som de esmeril ao nascer do sol.
Nos fundos da casa de Búzios, o improvável: uma carpintaria completa.
Estantes de ferro escuro, maquinário pesado, ferragem pelo chão e o radinho AM, aos berros, segue a estrela solitária.
Guiando o corte da tora, com precisão, dedos longos de um velho calvo.
Aquele senhor, capixaba, caxias, saíra menino da acanhada Alegre para o mundo. Estudo e empenho carimbados no passaporte.
Em seis das principais capitais dos quatro cantos, encarnou o modo, a linguagem, a posição de um país.
Carreira sólida como o toco de Araribá, prestes a ser moldado.
O Embaixador, que não é José, é João, vira carpinteiro.

Marcenaria amadora, familiar e intuitiva.

Antecipou o futuro.

A neta indócil, por vezes, invadia o ofício atraída pelo cheiro de cedro. Pelo alarido.
Obediente, apreciava de longe o voo das farpas.
Depois de prontas, cadeiras, casinhas de boneca, de passarinho, ganhavam cor em pinceladas infantis. Uma lambança.
Criação lixada, virava tela para respingos juvenis.
Aquarela a vista e o mar de Manguinhos, debruçado na frente, ficava de lado.
Virava miragem.
Aos seis anos, a pirralha espoleta, repleta em piolhos e bichos do pé, queria cantar, encenar, falar e falar...

_Depois do almoço tem show na varanda, tá vovô?, intimava ela.

Lá vinham então coreografias intermináveis, monólogos desavergonhados, teatrinhos toscos com participações, nada voluntárias, da tímida irmã mais nova e do primo constrangido.
Perspicácia latente do diplomata, mestre em negociações internacionais, em avaliações vocacionais, farejou a verve da magricelinha.
Numa manhã de ventania, respondeu, singelo, aos anseios da neta do meio.

Na bancada, barulho estridente, sujeira, suor. Rabiscos, lavras, aparas, entalhes.
Num encaixe simples, duas peças envernizadas.
Por fim, a cola de sapateiro uniu o quebra-cabeça do destino.

Presente intrigante.
É uma ferramenta? Um martelo de madeira?

_Não, responde o Embaixador.
_É seu primeiro microfone.

Quadrado, sem charme, é verdade. Na ocasião, João também reconhecera em riso.
Logo personalizei o mimo com iniciais em purpurina cor de rosa na canopla. "S.G." ou "Super Gata". Auto elogio típico da insegurança adolescente.

Nas mãos da menina, pra todo lado, o novo brinquedo preferido.
Parceiro que, mesmo afônico, explanou ao balneário o desejo inconsciente, oculto.

Marcenaria familiar, intuitiva.

Antecipou o futuro.

Sigo com ele em punho, vovô...

domingo, 24 de outubro de 2010

Democracia

Sou Mariana, torço pelo Flamengo, tenho medo de avião e, apesar da alegria natural, por vezes, sinto-me só.

E sim, uma pedra atingiu-me recentemente.

Naquela manhã, a jornada começou em um Centro de Convenções acompanhando o governador Sergio Cabral na abertura de uma feira de agências de viagem. O rádio toca:

 _Vá para Campo Grande. Sua equipe é a que está mais perto. O candidato Serra fará caminhada no calçadão no bairro. Ele segue de helicóptero. Se vocês não saírem agora, não chegam a tempo_ disse a subchefe de reportagem.

Seguimos por Santa Cruz. O carro ficou em um estacionamento próximo. Descemos antes, com medo de perder imagens. Fomos a pé atravessando às pressas o comércio da região no rastro das bandeiras do partido. O tucano chega embalado por intermináveis apertos de mão.

Um pequeno grupo inicia um protesto. Olhei de soslaio, sem muita preocupação.
De repente, mais militantes do partido adversário se aproximam.
O cerco então ganha a atenção dos jornalistas.
O calçadão perde espaço. Fica estreito. Lojas fecham as portas.
A guerra barulhenta de jingles não é mais só de sons. Invade o corpo a corpo.
Avancei esgueirando-me entre a multidão enfurecida.
Num relance, vejo Serra envolto em cordão de braços, sem chão para pisar.
Depois, com as duas mãos na cabeça. Algo acerta-me o crânio.
Sangro e saio de cena.

Não sou eleitora de Serra, não sou eleitora de Dilma. Não sou fita-crepe, não sou de pedra.
E sim, algo fez-me doer. Carrego agora um peso morto. Sólido. Bolinhas de papel? Bexiga d´água? Não importa. O que abriu-me o couro, caiu como maçã de Newton.
Despertou reflexão muito mais ampla.
Tem alcance maior que objetos não identificados.
No pós-pedrada, sou incondicional.
Defendo com fervor incomum a liberdade política,o ir e vir, a exposição de ideias, a imprensa livre.
Sem bloqueios ou cerceamentos.
O pensamento parece medíocre e utópico diante das conjecturas do pesquisador inglês sobre a gravitação universal. Para mim, merece a mesma atenção.
Por enquanto, anseios que permeiam meus sonhos.
Na vida real, não sei em quem votar.

Sou Mariana, torço pelo flamengo, tenho medo de avião e, apesar da alegria natural, por vezes, sinto-me só. E sim, aguardo a DEMOCRACIA atingir-me a cuca. Abrir uma nesga profunda.
Será esta a ferida que não pretendo sarar.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Até Cansar


Tempo precioso.
Que voa feito gavião.
Perco-te em pensamentos?

Tempo dourado.
Da juventude veloz.
Desperdiço-te em teimosia?

Tempo meu...
Seja amigo da intuição.
Compasse o ritmo da insistência.
Confirme, em segundos, a descoberta.
E, em minutos, minha certeza.

Que ponteiros parem os instantes.
Que horas soprem rompantes.
Deixe-me seguir o caminho cruel.

Na paixão, esqueço que tens fim.

Tempo. Dê-me mais tempo.
Não quero partir das minhas vontades...