sexta-feira, 16 de julho de 2010

Olá


Iansã queria molhar.
Na manhã cinzenta, a busca por respingos valiosos da orixá.
Caminhei a pedra portuguesa já manchada por meu rastro.
A chuva morna deslizava a pele, a alma.
Turistas observavam a alegria de viver no Rio, faça sol ou faça temporal.

No Arpoador, vinho chileno em mesa debruçada na areia.
Nas orelhas, a provocação de Stacey Kent.
No horizonte nublado, um olhar castanho de pestanas longas.
Aproximação elogiosa: o monossilábico, mas eficiente olá.

O amigo atleta surgira de bicicleta oferecendo outra taça.
Ocupou, sem convite, a cadeira oposta com cachos de mel.
Conversa fluente com o inesperado.
Horas de coincidências ensopadas por gotas que encorpavam.
Folhas da amendoeira evitavam a diluição do encontro.
Ficaríamos até o fim. Até o granizo. Até ressecar.

A praia, mágica, toda nossa e do garçom impávido.
Era como se o SOL estivesse brilhando.
Bronzeamento intenso sem fator de proteção. Sem filtros.

A garrafa se vai. E eu também.

No caminho de volta, o encontro provocado.
Carona na garupa debaixo do toró.

_Me abraça forte, vou acelerar.

Enxugo o rosto nas costas úmidas.
No balanço do pedal, esqueço a cidade.
No auge da embriaguez, um mergulho no mar exclusivo e quente de Ipanema. De roupa e tudo.
O braço forte salva do caldo, da descrença.

Um beijo roubado. Salgado.
Mais chuva pra brindar.

Iansã queria molhar.

domingo, 11 de julho de 2010

Tarada

O camarim de uma repórter é itinerante. Improvisos em movimento... Batons e escovas no carro acelerado, no helicóptero turbulento, na calçada escura. Quinquilharias viajam conosco.
São testemunhas do caos, da violência, do tumulto.
Itens que deixam a pia para nadar contra o fluxo dentro da bolsa.
Ao olhar o mapa do estado, descubro que o Rio ficou pequeno.
São poucos os recantos inexplorados.
Na tela, divido imagens. Na mente, guardo os bastidores.
Depois de abraçar a profissão, acompanho telejornais com perguntas íntimas:

 _Como será que essa jornalista chegou até aí? _Onde ela vai dormir? Vai tomar banho hoje?

Para mulheres, o desafio é maior. Envolvidas pela adrenalina da notícia, muitas vezes esquecem do trivial. Da bexiga cheia. Quando começa a apertar, é preciso perder a cerimônia.
Coleciono banheiros inusitados em minhas peripécias jornalísticas.
Certa vez, de plantão na porta de um hospital público, busquei alívio na funerária em frente.
No pequeno banheiro embaixo da escada, um depósito de caixões infantis.
Um pipi mórbido.
Numa casa humilde nos confins de Itaboraí, não tinha vaso sanitário.
Tive que mirar num buraco aberto no chão de terra batida.
Um pipi aéreo.
Como vêem, me libertei de frescuras em prol das necessidades básicas.
Uma única fobia profunda, porém, ainda me abate. Desatina.

Há poucos meses, numa terça-feira de trabalho insano, percorri a cidade em reportagens alucinantes. Tiroteio na favela, assalto na auto-estrada. A última tarefa seria entrar ao vivo às sete da noite.
A equipe me aguardava em frente ao Hospital do Fundão. Lá daria as últimas informações sobre o surto de gripe suína. Cheguei em cima da hora. Tinha então vinte minutos para apurar as novidades antes de entrar no ar. Não conseguia assimilar o balanço mais recente da doença. Dados divulgados pelo médico se perdiam no vento. Algo me incomodava.
Foi aí que lembrei. Estava apertada há tempos.
Descobri um banheiro nos fundos da cantina da Universidade.
Entrei esbaforida.
Uma aluna alertou que a luz estava queimada e se prontificou a vigiar a porta que não tinha maçaneta.
Um pipi no breu.
Melhor assim. Só depois vi onde estava pisando.
Quando abri a porta, um feixe de luz revelou o pior: O chão estava repleto de baratas cascudas.
O inseto repugnante age como criptonita em meu heroísmo.
Saí às pressas sem lavar as mãos.
Já junto da equipe, operadores de áudio iniciam o ritual de instalar equipamentos e fios em minhas costas para a entrada no telejornal.
De repente, um deles diz a frase funesta:
 _ Eu vi um bicho entrando na sua calça.
Senti a inimiga percorrendo a canela. Provavelmente saiu clandestina daquele banheiro fétido agarrada a meu jeans. Perdi as estribeiras. Pulei feito milho em óleo quente.
A intrusa continuava subindo. O jeito foi baixar as calças.
Medida extrema, acertada e rápida. O semi strip-tease durou apenas o bastante para eliminar a cretina.
A ousadia da barata foi castigada com um sonoro e mortal pisão do cinegrafista.
Caí em prantos enquanto meus colegas aplaudiam a atitude inédita.
Os quatro não viram nada além de alguns segundos de calcinha cor de rosa.
Rendinhas ao relento marcaram o imaginário.
Até hoje ouço comentários.
Dois minutos depois, lá estava eu no vídeo.
Sem lágrimas e cheia de números para divulgar.

Improvisos em movimento...

terça-feira, 6 de julho de 2010

Teimosia

Teimosia é fluido. Saliva que não seca. Brota voluntariosa. Azeda o gosto. Esguicha a estima. Viscosa. Penetra o lábio. Jorra o beijo . Pára o tempo. Baba a insistência. Teimosia é cuspe na cara. Agride sem ferir. Escorre sem ver. Muda o prumo. Umedece a ética. Desatina. Seque a secreção. Desidrate a goela. Murche o músculo. Marrete o crânio. Rasgue entranhas. Tranque o peito. Depois, lamba as feridas.
Homenagem singela ao poeta Augusto dos Anjos, mestre da escatologia.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Segredo

A vida é um livro em construção. Uma prova de resistência.
Até aqui, meus capítulos eram públicos.
Não havia cola ou grampos limitando a leitura.
A consciência diária de quão breve é o tempo, catapulta ao intenso.
Não faltam situações vibrantes. Surpresas agradáveis. Começos no primeiro pelotão.
Passeio pelo inusitado com destreza.
Preencho páginas em branco com pique de atleta sem medo de contusões.
A maratona segue com a divulgação do feito.
Uma exímia e carismática contadora de histórias. No almoço da família, na rodinha do Baixo, não levanto a mão para pedir a vez. Tenho sempre à volta público ávido por detalhes e a conversa flui sem cronômetros.
Vibro em conjunto, sofro acompanhada.

Entre as estratégias para completar o trajeto dos trinta quilômetros, ou trinta anos, sem dores musculares está um sachê. Na fórmula, carboidrato e pudor. O ritmo da corrida capta energias externas.

Hoje, censuro anúncios alegres. Olho por onde piso.
Vislumbro o final feliz.
Conquistas em andamento devem ficar longe das pistas, até que se cruze a linha de chegada. Sucesso revelado pela bandeirada final, jamais pelo corredor.
Já tenho uma estante de medalhas. Vitórias puras, livres de obstáculos invejosos. De falsos aplausos.
Para não queimar a largada, elejo ouvidos privilegiados.
Não necessariamente orelhas antigas, irmãs ou que apuraram a audição ao passo das minhas. A escolha é pura intuição.
Olho no olho. Ou um pouco mais que isso.

Segredos agora ficam em baú de antiquário.
A chave só sai do molhe quando a caminhada requer opinião especializada, de quem acompanha o pingar do meu suor.
Fatos são então compartilhados em aura de genuína torcida.
Tenho chaves de outrem em mãos.
Remexo bugigangas alheias quando solicitada.

Confiança se conquista aos poucos, aos centímetros.
O raio de atuação é mínimo.
Quando parceiros de treino são descobertos, trate-os com generosidade. Eles merecem ver-te superando limites. Por vezes, propõem exercícios duros em busca da sua velocidade. Do tiro perfeito. São anabolizantes naturais.
Não tente ditar a cadência das passadas.
Apenas conte e ouça. Sem ultrapassagens.
Siga avançando o asfalto lado a lado.

O frasco de cola, o grampeador, a chave, não precisam ficar só sob sua guarda. Basta não jogá-los para a arquibancada.
Troféus a vista.

domingo, 27 de junho de 2010

Ode às estreitas genuínas

Sou moça de contornos sutis.
No balneário das musas de albumina, ossos proeminentes podem ser incômodos.

Magricelas fazem malabarismo no sinal. Escondem a virtude em babados e estamparias bufantes, como loba que eriça pelos para atrair o macho.
Pobres cambitos. Testam operários e passam sem assobios.
O doce balanço a caminho do mar é azedo. Apelidos infames repercutem no salão:

 _Espia só o esqueleto ambulante!

No embate com a profusão de seios fabricados, traseiros eqüinos e cabeleiras alisadas a ferro, uma competição desleal. Naturais versus biônicas.
As magras saem destruídas do primeiro confronto.
No dia seguinte, a busca pela lingerie encorpada, a blusa decotada e por fim, o analista.

Agora saibam: A derrota dura pouco. A vitória vem. Chega trotando lenta e saborosamente para estreitas genuínas. Essas sim, conhecem seu potencial. E como é vasto, acreditem.

Pratos fartos, calorias a perder de vista, combatidas de pronto pelo amigo inseparável, o metabolismo. Alegria de viver e de comer.
Entre a caneleira e o canelloni ficam com la Pasta, com muito parmesão por favor.
As medidas são portáteis e suaves. Carne que molda pontos cruciais. Gordurinhas bem localizadas. Malemolência na pista. Leveza perfumada. Energia de sobra.
As curvas estão ali, basta saber dirigir na estrada. Manobras surpreendentes não se revelam em shortinhos colados. Ficam na penumbra a espera de Fiat lux.
E quem faz a luz, sabe do que estou falando.

A casa do vizinho é espaçosa. A delas é pequena e tem cor.
Por vezes, adorariam um gramado mais verde em alguns canteiros...
Compensam então, com telha avermelhada no topo. Cobertura moderna, impermeável, inteligente.

Mulheres são insatisfeitas por natureza. Todas mudariam um detalhe ou outro no quintal.
As magras não são diferentes. Precisam apenas de estima arquitetônica.
Uma obra sem bisturis ou enxertos.
A ferramenta mestra é um engenheiro sabichão e só.

Feita a reforma na confiança e um abraço:
Quem visita vira hóspede.
Para valorizar a carcaça, abundância, não de nádegas, mas de charme.
Dom que escapa ileso da gravidade.

As fininhas natas também eriçam os pelos, só que sem intenção de atrair a matilha.
O arrepio é focado. Visa um alvo por vez.

Sim. Sou moça de contornos sutis. Com orgulho.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Rabiscos na Caverna


A comunicação nos destaca entre as espécies.
Agora, a descoberta: A retórica, que tanto vangloriamos, é também dúbia e perigosa.
O uso incoerente, displicente, tem alcance que os olhos vêem e o coração sente.
Diálogos jogados podem doer tanto...
Falar é bom, mas, o verbo pede moderação.
O Dizer globalizou-se.
Bebe de fonte tecnológica e tem sede.
Ganhou status na internet pro bem ou pro mal.
Sabemos mais uns dos outros, porém, não estamos juntos.

A conversa? É no chat. O bate-papo é virtual. A paquera, via Skype.

A frase deslocada no blog, o termo deplacê em SMS, exclamação a mais ou a menos na grande Rede, pode desviar caminhos, implodir o HD do destino, se é que ele existe.

Eloqüente que sou, só aprendi na maturidade a lidar com tal virtude.
Mesmo com certa cautela literária, ainda derramo água fora da bacia. Provoco interpretações e, subseqüentes, inundações.
Na dúvida melhor calar, fechar a bica ou o bico.

Palavras ambíguas transbordam na tela, agitam o peito, inflam o ego e, não raro, decantam perversas na memória. No planeta interligado e ligeiro, a abundância de substantivos é um choque térmico. Entorna como balde de água gélida sobre a brasa do inesperado.

Para que falar o que se pode manifestar em gestos, olhares, aromas?

Hoje deleto exageros, enxugo exaltações. Raciono.
Busco o sublime encontro de energias irmãs e essas, não falam, não molham. Queimam.

Não quero perguntar quem és. Quero descobrir.
Não quero ler seu perfil. Quero ver-te.
Não quero escrever sobre ti. Quero encarar-te.

Um dia em encontro único, ainda hei de dançar com instintos a música muda. Deixarei alegrias gravadas em desenhos rupestres nas cavernas paleolíticas.

Sentimentos são simples como símbolos riscados na pedra.
Nada de letras, só figuras.
Hoje, O DIZER não enobrece.

O QUERER é o que me destaca entre as espécies.

sábado, 19 de junho de 2010

A vida alheia

Um ano e meio na Gávea.
Em dias úteis, o apartamento vira quarto de hotel.
Clássica tríplice dos proletários: Banho, jantar e cama.
Terça passada, madruguei, trabalhei e, milagrosamente, voltei cedo ao meu, digamos, Meridien.

Na agenda, nem manicure, nem ginástica, muito menos exame periódico.
O compromisso era um só:

Ficar em casa. Um deleite. Uma riqueza.

Apreciei, sem pressa, a chegada do sol. A hora exata da invasão de luz na fachada. Raios que inspiram o humor de qualquer um. Som de passarinhos. O recanto bucólico recebe visitas encantadoras de manhã. Andorinhas, periquitos e até tucanos debruçam na varanda. Como quase nunca estou em casa de manhã, a revoada se espanta comigo.

Quebrei o gelo oferecendo parte do meu café da manhã.
Morangos e bananas divididos irmãmente.

Sem alarmes ligados, o sono da beleza no sofá, agarrada a quatro almofadas.
Um aroma inebriante de carne assada toma conta da sala alertando que é hora do almoço.

João Pedro chega da escola e exclama na garagem:

_O carro da minha namorada está aí, mamãe!

Meu vizinho de andar tem apenas cinco anos. Um dengo só com a moça do fusquinha prata que vos escreve. Menino esperto. Ganhou bombom de sobremesa.

De repente, o aviso infeliz de que a vida segue lá fora: Toca o interfone.

_Quem fala? Pergunta a voz sinistra.
_É Mariana. Quem é?
_Cabo Ferreira da Polícia Militar.

Pausa para o inusitado. A veia jornalística infla feito balão com ar quente.

Uma patrulha chegara ao prédio para averiguar denúncia.
Uma mulher estaria sendo espancada aqui.
Vou pra janela incrédula. Lá estavam dois Pms invadindo com fuzis meu paraíso.
Ouço gritos agudos nas redondezas.
Sem susto, dei risada.

Era o diretor de teatro do terceiro andar ensaiando esquete com uma estrela global.
Atuação tão convincente, que alarmou a vizinhança.
Ensaio com imediata aprovação de público, crítica e polícia...
Soldado Marcos e Cabo Ferreira deram meia volta, frustrados.

Enquanto isso, no primeiro andar, o médico comemora gol da Nigéria.
Antes do fim do jogo, uma ambulância pára no portão para sequestrar o doutor.
A emergência acabou com a torcida. Calou a vuvuzela.

Começa a reunião de condomínio no pilotis. À essa altura, agradeço por não ser proprietária do imóvel. Desavenças e reclamações rompem o resquício de silêncio. Difícil mesmo é não ficar escutando. Como ignorar diálogos tão hilários? Pincei uma, entre as inúmeras frases de pura finesse literária do encontro:

_Você é um porco que joga guimba de cigarro no meu capô! Vai pagar a pintura, fumante imundo!

Moradores em franca batalha e eu, de pantufas, tomando chá de camarote.

Antenas continuaram ligadas no fim da tarde diante de barulho animado no andar de cima.
A moradora cinquentona, de namorado novo, embala o teto com um festival de percussão.
Peripécias sexuais que não se limitam ao quarto. Na cozinha foi um transe.
O casal que perdoe a intromissão mas, a calmaria da Rua, não encobre sussuros.
Muito menos gemidos vigorosos.
Como orelha não tem pálpebra, acompanhei boa parte da festa.

Feliz em saber que existe tal tesão entre coroas às quatro da tarde num início de semana.
Tudo muito saudável, muito constrangedor, muito divertido.
Deixo os pombinhos em paz e gasto minha energia pintando as portas da sala, amareladas pela intensa umidade.

Na escada, entre pinceladas na soleira de entrada, um desfile de agradecimentos:
A celebridade aplaude minha intervenção junto à polícia,
o garoto surge fagueiro com boca lambuzada de chocolate
e a vizinha devoradora flutua nos degraus.

Essa, nem me viu...
Ficar em casa. Um deleite. Uma riqueza.