terça-feira, 20 de setembro de 2011

Salgueiro

Tiros anunciavam o alvorecer no Salgueiro.
O Morro da Tijuca, do samba, do bamba.. Em guerra.

Era o segundo dia de 2001.

Traficantes rivais disputavam território.
Famílias e repórteres em madrugada encurralada.
Barracos e bares fechados.
Então repórter da Rádio CBN, me encolhi na soleira de um sobrado.
Balas triscavam a fuça, como varejeiras na orelha do boi.

Três horas ao som dos disparos.

Os fuzis se calam.
Moradores também.

Saio da trincheira.
Desço a ladeira apressada.
Tão íngreme quanto a parede, crivada de balas.
Zumbido constante no ouvido.
Trauma eterno na memória.
E mais uma reportagem violenta para narrar.

Passei aquela semana falando sobre o caso.
Comigo mesma.
Decidi não contar em casa o que vivi.
Eles não entenderiam.

Também não me atrevi a subir o Salgueiro novamente.
Na saída, fiz juramento no pé do Morro.

No último sábado, quebrei a promessa.
Dez anos depois.

A reportagem era sobre uma festa. Um ano de ocupação policial.
Na subida, a cada curva, a pincelada de um retrato.
A imagem de mim mesma refeita na lembrança.
Enxerguei a iniciante assustada, à perfeição.
Em cada esquina.
Até o cheiro de pólvora ventou do passado.

Encontrei a favela receptiva.
Com bandeirinhas e crianças empurrando ladeira acima.
Com Zico em campo na pelada com os moleques.

A menininha no banho de mangueira no quintal.
O aroma do feijão no fogo.
Pontos de observação do tráfico eram lajes.
Apenas lajes.
E roupas penduradas com esmero por Dona Áurea, quarenta anos de Salgueiro.

Debruçada no tanque, profetizou:

_Nasci e vou morrer aqui. Não largo o Morro por nada.

E desta vez, o som do Salgueiro foi diferente.
Foi canção de Herivelto:

"Tem alvorada, Tem passarada
Ao alvorecer,
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer
Alvorada lá no morro que beleza"




 

 
Volto já, Salgueiro. Volto já.  

13 comentários:

  1. Recordar é sempre reviver, e muitas vezes é ressurgir...

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  2. Que beleza de poesia, não sabia q vc era poetisa. bjs Fancoil´s.

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  3. A capacidade de realizar o agora é mais forte que a lembrança daquilo que ficou para realizar no passado!Não existe lembrança pura do passado, o passado é sempre reconstruído,e a maneira com que você fez isso,foi brilhante .Parabéns Mari !
    A Cada dia que passa lhe admiro mas.
    1ooo Beijossss Te Adoro. =)

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  4. A cada anúncio de um novo post no SUSPIRADA meu coraçao se enche de expectativa! Risos. As palavras supracitadas me fazem visualisar uma jornalista ora corajosa, determinada e de fibra, ora meiga, delicada e graciosa! Mári, as vezes as experiências do dia a dia nos fazem vivenciar momentos mistos de sentimentos e emoçoes, e o crescimento vem dessas particularidades únicas!! Parabéns pelo relato e muito obrigada por compartilhar um pouquinho das suas experiências conosco. Sou apaixonada pelo Suspirada!! Desejo o melhor de Deus pra tua vida! Beijos
    @elizetnobre

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  5. Lindo texto e melhor ainda é poder testemunhar o q de bom melhorou no morro do Salgueiro, tua seguidora do twitter Marta @mcaraujo2009

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  6. Mais um texto perfeito! Como também sou repórter, consigo me emocionar com cada palavra. Parabéns! Admiro DEMAIS o seu trabalho. Um grande abraço da sua seguidora, @femonteiro85

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  7. Nossa recordar é sempre bom quando temos bom momentos para recordar, não é? Que bom Lady que vc recordou um futuro vejam só de todos que como a senhora lavando roupa, não larga o morro por nada! Sabe quem tem que largar o morro? O mal!

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  8. Bonito o texto! Que essa mudança chegue e permaneça em toda a cidade.
    Linda a foto! Adoro o Zico..;)
    Bjs

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  9. Recordações difíceis, porém únicas. Mas papai do céu cuidou de vc para voltar ao topo do morro uma vencedora. bJoooo

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  10. Dá pra ler cada palavra do poema com o som da tua voz acompanhando, lindo!

    Abçs.

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  11. Nossa!!! q lindo!!!! Bjoss sua fã e seguidora no twitter:josy knopp

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  12. Como carioca, tenho muito orgulho de ver todos esses moradores de comunidades pacificadas com um sorriso de alívio no rosto. Isso não tem preço. Espero que esse seja um dos muitos passos corretos que ainda estão por vir.

    Beijo, Mari.

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